Dias antes de ser nomeado comandante do Exército pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva afirmou que a vitória do petista nas urnas foi “indesejada” para “a maioria” dos fardados e que “infelizmente” ocorreu. Falando a subordinados no Comando Militar do Sudeste em 18 de janeiro, ele destacou que não há elementos legais para contestar o resultado e alegar fraude no processo eleitoral, mas ponderou que “essa sensação (de irregularidade) ficou, porque a eleição foi apertada”. No mesmo discurso, ele fez críticas a Jair Bolsonaro e acusou o ex-presidente de tentar instrumentalizar as Forças Armadas em benefício próprio.
“A gente (Forças Armadas) participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada, não teve nada. Tanto que teve um relatório do Ministério da Defesa que foi emitido e que fala que não foi encontrado nada naquilo que foi visto. Agora, o processo possivelmente pode ter falhas que têm de ser apuradas, falhas graves, mas não dá para falar com certeza que houve irregularidades. Infelizmente foi o resultado que a maioria de nós, para a maioria de nós foi indesejado, mas aconteceu.
As declarações foram feitas em uma cerimônia em homenagem aos militares mortos no terremoto de 2010 no Haiti e divulgadas pelo podcast Roteirices. Antes de iniciar sua fala, Paiva advertiu que não queria ser gravado, mas o pedido foi infringido por um integrante da plateia.
O discurso teve tom institucional, com defesa das Forças Armadas como instituição de Estado, não de governo. O general criticou a politização dos quartéis e episódios ocorridos durante o governo Bolsonaro, como quando o ex-presidente quis organizar uma motociata partindo de um quartel.
Apesar de defender o respeito às instituições e ao resultado das urnas, o comandante afirmou que ficou, sim, a sensação de “parcialidade” por parte da Justiça eleitoral, em favor do presidente Lula. Ele rechaçou repetidas vezes a ideia de contestar a eleição, alegando ser necessário manter a ordem institucional, mas afirmou não ser possível “garantir” nem que houve, nem que não houve fraude.
“Não posso garantir que teve ou não teve alguma coisa. Não posso garantir que a sensação de parcialidade não existiu por parte da Justiça. Mas o que eu posso falar é o seguinte: não tem ferramenta dentro da escala legal para prever contestação da eleição dentro do Tribunal Superior Eleitoral. Essa sensação ficou, porque a eleição foi apertada, mas aconteceu”, acrescentou o general.
‘Bolha’
Paiva afirmou que a maioria dos fardados é conservador e de direita, mas ponderou que isso não pode interferir no papel da instituição de se manter apartidária. “Política partidária dentro da força gera desgaste. Todos nós somos da bolha fardada, da bolha militarista, da bolha de direita, conservadora. A maioria de nós é dessa bolha, raramente um de nós frequenta outra bolha”, disse.
O general lamentou o desfile de blindados da Marinha em Brasília no dia da votação no Congresso da PEC do voto impresso, em 2021. Ele afirmou que, pessoalmente, ele tinha simpatia pela proposta apresentada por Bolsonaro, mas que a decisão do Legislativo sobre o tema deve ser respeitada. “Foi uma proposta legítima do presidente de aperfeiçoar o sistema eleitoral. Independente de eu concordar ou não, a proposta foi rejeitada. Eu, particularmente, como cidadão brasileiro seria favorável a um voto certificado, acho que esse processo no futuro vai ter que ser aperfeiçoado. Mas a minha opinião não interessa, o que interessa naquele caso é a opinião do Congresso Nacional” disse.
Intervenção
O general afirmou ser preciso combater os “extremos dos dois lados” e chamou os manifestantes que invadiram as sedes dos três Poderes de “malucos” e “vândalos”. “É um cara que entrou numa espiral de fanatismo que não se sustenta. O que produziu? Ia derrubar o governo assim? O Supremo muda? Todo mundo se comunica e julga por sistema online. Se jogar uma bomba no palácio, ele vai despachar de outro. Que coisa infantil, besta, burra, irascível”.
Paiva também comentou mensagens que militares passaram a receber nas redes sociais após a vitória de Lula, pedindo que as Forças Armadas tivessem “coragem” para evitar que o presidente eleito tomasse posse.
“Intervenção militar com Bolsonaro presidente. Impossível de fazer. Imagina se a gente tivesse embarcado em uma aventura. Vocês viram a repercussão mundial. A gente não sobreviveria como país. A moeda explodiria, a gente ia levar um bloqueio econômico jamais visto. Você ia ficar pária, e o povo ia sofrer as consequências. Ia ter sangue na rua (...) Coragem é o reverso. Coragem é se manter instituição de Estado, mesmo que custe alguma coisa de credibilidade e popularidade”, afirmou o general.
O general defendeu o então comandante do Exército, Júlio César Arruda, a quem ele substituiria dias depois, e afirmou que faltou ordem de Lula para esvaziar os acampamentos bolsonaristas antes do dia 8 de janeiro. “De 1º de janeiro até o dia 8, quem era o governo? E qual a ordem recebida para retirar (os manifestantes)? Nenhuma. Não teve ordem. Porque a expectativa era que o movimento ia naturalmente dissolver”, disse.
“O general Arruda fez o certo. Eu faria a mesma coisa. Impediu que entrassem no acampamento para prender as pessoas à noite. Ia rolar sangue. Tudo o que ocorreu no dia 8 em Brasília está sendo apurado via inquérito. ‘Ah general, tinha cara nosso’. Todo o mundo viu as imagens. O coronel (Adriano) Testoni, todo mundo viu imagem do general da reserva. Se ele fez coisa errada, vai ser responsabilizado e faz parte do processo de apuração normal”, disse.
Como mostrou o Estadão, o coronel Testoni participou da marcha na Esplanada dos Ministérios no dia 8 de janeiro e divulgou dois vídeos em suas redes sociais ofendendo o Exército e xingando generais do Alto Comando.
Foi aberto um Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar fatos relacionados ao ataque às sedes dos três Poderes e o coronel da reserva Adriano Camargo Testoni foi indiciado por injúria contra os integrantes do Alto Comando da Força Terrestre e por ofensa contra as Forças Armadas, ambos crimes previstos no Código Penal Militar. Pelos crimes em suas formas agravadas, o oficial pode pegar até 2 anos de prisão.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), abriu nesta segunda-feira, 27, uma investigação sobre a participação de policiais militares e membros das Forças Armadas nos atos golpistas do dia 8 de janeiro. A decisão põe fim ao debate sobre quem teria a atribuição para processar e julgar os militares envolvidos nos protestos extremistas na Praça dos Três Poderes: a Justiça Militar ou a Justiça comum. Relator das investigações sobre o 8 de janeiro, Moraes definiu que a competência é do STF.
‘Exército não tem partido’
Na gravação do dia 18 de janeiro, Paiva afirmou, ainda, que o “pessoal da extrema direita” estava corroendo as Forças Armadas, inclusive dentro da própria instituição. “O pessoal da extrema direita, que incluo pessoal nosso, está permitindo que nos ataquem, inclusive tentando destruir cadeia de comando”.
Paiva também defendeu que o Exército não pode sucumbir a posicionamentos político-partidários. “O Exército não tem partido. Isso tem de ser um mantra. Se a gente permitir que o Exército fique partidário, é o começo da nossa derrocada. Quem permite que a instituição vire partidária é a Polícia Militar, e ela sofre as consequências disso”, disse.
O Exército foi procurado pela reportagem nesta segunda-feira, 27, para se pronunciar sobre as declarações no evento com subordinados, mas ainda não se pronunciou.
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