Uma das tendências políticas mais marcantes ao longo da última década tem sido o crescimento da polarização em democracias mundo afora. Apesar da vasta literatura acadêmica recente sobre o tema, ainda não há consenso sobre o que causa a polarização nem qual é a melhor forma de mensurá-la. No debate público, o termo é usado muitas vezes de forma vaga: afinal, a polarização ideológica – que descreve uma diferença expressiva entre posições políticas dos principais partidos – é diferente da polarização afetiva, termo que descreve uma forte aversão a pessoas com outras convicções políticas. Da mesma forma, há países com forte polarização das elites políticas, enquanto outros têm eleitorado profundamente polarizado.
Não surpreende, portanto, a ausência de respostas sobre como lidar com o fenômeno, até mesmo porque algum grau de polarização é fundamental para o bom funcionamento da democracia: cidadãos devem poder escolher entre opções políticas claramente distintas na hora de escolher seus representantes. Sem discordâncias e rivalidades políticas, não há democracia. O foco, talvez, deva estar em saber como gerenciar essas discordâncias e garantir que elas não se transformem em polarização destrutiva, a qual inibe um debate público racional e produtivo – afinal, não há dúvida de que excesso de polarização representa perigo à democracia, aumentando o risco de violência política e de escaladas autoritárias.
Um dos riscos do debate sobre as causas da polarização é que o termo às vezes dá a entender que a culpa sempre é, na mesma medida, dos dois lados. Porém, casos como os da Turquia, da Índia e da Venezuela – três países onde a polarização parece ter sido um fator importante na degradação democrática – sugerem que os principais responsáveis foram líderes com ambições autoritárias que apostaram na demonização de seus oponentes, para depois justificar medidas antidemocráticas. Da mesma forma, nos EUA, a polarização não ocorre entre dois pólos extremos, mas entre um Partido Republicano radicalizado e um Partido Democrata liderado por Joe Biden, justamente um representante da ala mais moderada da agremiação. Nos quatro casos, a forte polarização afetiva – e a aposta na retórica “nós contra eles” e na descrição dos rivais como “inimigos da pátria” por líderes como Erdogan, Modi, Chávez e Trump – parece ser um elemento-chave para criar uma “democracia de torcedores”, onde o senso crítico é substituído por uma filiação permanente, acrítica e quase religiosa.
Mesmo assim, seria um erro olhar apenas para lideranças nacionalistas com ambições autoritárias como única causa da polarização. A fragmentação do debate público e o surgimento de bolhas dentro das quais pessoas não são mais expostas a opiniões divergentes, bem como algoritmos nas redes sociais que favorecem opiniões radicais, contribuem para a polarização destrutiva. Superá-la é fundamental, pois ela ameaça tirar das democracias uma de suas grandes vantagens em comparação com sistemas autoritários: um debate político construtivo que ajuda a gerir discordâncias políticas entre grupos com interesses divergentes, pautado pela aceitação da legitimidade do outro lado e pelo reconhecimento de que a alternância de poder pode ser positiva para que o perdedor tenha a chance de se renovar – certo de que terá, no próximo ciclo eleitoral, uma nova oportunidade de governar.
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