Um contrato do governo de São Paulo com a construtora Planservi assinado em agosto de 2021 para projetar obras em estradas entrou na mira do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP). Na tabela de composição de preços, estavam previstos R$ 1,1 milhão para o aluguel de um carro com capacidade para quatro pessoas e motor 1.6 e de uma caminhonete com ar-condicionado e direção hidráulica. Durante os oito meses de serviço, um veículo percorreria 924 mil km e o outro, 84 mil km – distâncias que, somadas, equivalem a 25 voltas em torno da Terra.
Para cumprir tal itinerário, os dois automóveis precisariam fazer, juntos, 4,1 mil km por dia. O carro encarregado do trajeto mais longo teria que rodar a 160 km/h, velocidade superior ao limite de todas as vias do País, ininterruptamente durante todo o período.
O tamanho dos percursos chamou a atenção de servidores da Secretaria de Agricultura, que incluíram as informações em um relatório entregue ao TCE-SP em maio e revelado pelo Estadão. No documento, apontam para graves irregularidades cometidas no programa Melhor Caminho, relançado na gestão do deputado estadual Itamar Borges (MDB) à frente da pasta com o objetivo de reformar 4,8 mil km de estradas em áreas de produção agrícola. Ao todo, São Paulo tem 160 mil km de vias rurais. Com o aluguel de carros previsto no contrato, era possível percorrer a integridade de todas as vias por seis vezes.
As suspeitas de desvios no programa levaram o Ministério Público a abrir 147 investigações para apurar o pagamento de R$ 50 milhões em aditivos de reequilíbrio econômico-financeiro a empreiteiras contratadas para executar as obras. Os repasses foram efetuados no fim de dezembro de 2022, no apagar das luzes do governo de Rodrigo Garcia (PSDB).
Um parecer da assessoria técnica do tribunal questiona a licitação em que a Planservi venceu a concorrência contra outras duas competidoras, apesar de ter oferecido o maior preço. A empresa apresentou proposta de R$ 27 milhões para fazer os projetos – o valor é R$ 1,5 milhão superior à oferta mais baixa, feita pelo Consórcio HMP. Mais tarde, ainda recebeu aditivos de cerca de R$ 1 milhão.
Os critérios adotados na seleção foram considerados irregulares por técnicos do TCE-SP. Nas regras do edital, as chamadas “propostas técnicas”, que mediam a capacidade das licitantes de realizar o serviço, tinham peso sete e os preços, peso três. Aplicou-se ainda uma fórmula em que a diferença entre as “notas de preços” da empresa mais econômica e da mais custosa poderia variar em apenas 10 pontos em um total de 100. Com isso, a Planservi conseguiu ter a melhor nota geral mesmo tendo feito proposta mais cara aos cofres do Estado.
“Não foi justificada a proporção adotada e nem se observa que foi efetivamente utilizada tal proporção”, diz o relatório de auditoria realizado por fiscais do tribunal, que também citaram decisões anteriores em que os conselheiros consideraram irregulares licitações com normas semelhantes.
Eles também apontam para deficiências na avaliação técnica das propostas. Segundo os técnicos, o texto do edital utilizou termos genéricos ao estabelecer critérios de avaliação para a proposta técnica. “Notamos que há subjetividade nos critérios de julgamento e atribuição das notas técnicas não se verificando transparência e clareza nos critérios adotados, seja porque apoiados em expressões de abstração, seja porque de obscura compreensão no mérito da avaliação”.
Além do aluguel dos veículos, outros pontos da tabela de preços da Planservi foram questionados, a exemplo da contratação de um total de 97 mil horas de trabalho de engenheiros e projetistas, uma média de 161 horas por projeto. Outra suspeita levantada diz respeito ao custo da hora de trabalho do engenheiro pleno ser inferior ao do engenheiro sênior, cargo de maior responsabilidade.
Procurado, o ex-secretário Itamar Borges não se manifestou. A Planservi também não respondeu aos questionamentos do Estadão.
Obras paradas
De acordo com levantamento da secretaria de Agricultura, foram pagos cerca de R$ 200 milhões por obras que não foram concluídas. Outros R$ 300 milhões foram gastos, conforme a análise da gestão de Tarcísio Freitas (Republicanos), sem passar pelo protocolo de processos internos que garantem a qualidade das obras.
Em alguns casos, transferências foram efetuadas às empresas contratadas sem que os despachos em que os fiscais atestam a realização do serviço fossem registrados no sistema eletrônico. Ao todo, 420 obras foram paralisadas, canceladas ou nem iniciadas, o que corresponde a mais de 2,4 mil quilômetros de estradas.
A instrução incorreta teria causado, além de gastos com projetos não executados, o pagamento duplicado pela pavimentação de um mesmo trecho e o descumprimento de requisitos de qualidade previstos em contrato.
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