‘CPI do Sertanejo’: carta-branca para show como o de Gusttavo Lima revela caixa-preta; leia análise

Sem precisar licitar nada, os municípios se sentem encorajados a não prestar contas

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Por Julio Maria
Atualização:

Se fosse pela Lei Rouanet, Gusttavo Lima não poderia ganhar R$ 1,2 milhão por um espetáculo, já que o teto a ser pago para o show de um artista solo, limitado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, caiu de R$ 45 mil para R$ 3 mil. Se fosse pela Rouanet, cada despesa com o show, do café da manhã às passagens aéreas, seria submetida a uma rigorosa aprovação. Se fosse pela Rouanet, seria obrigatória uma contrapartida social, como aulas ministradas por Gusttavo ou seus músicos à comunidade.

A cidade que contratou o show de Gusttavo Lima por R$ 1,2 milhão, Conceição do Mato Dentro (MG), tem 38% de sua população em situação de pobreza. Foto: Reprodução/Prefeitura de Conceição de Mato Dentro

Não há nada de ilegal no fato de Gusttavo Lima ou qualquer artista cobrar R$ 1,2 milhão de cachê. Eles podem cobrar o quanto quiser – e podem dizer também que agitam a economia, geram emprego e trabalham honestamente. O problema é quando o pagador dessa montanha é a prefeitura de uma cidade que se apega ao artigo 25 da Lei 8.666 de 1993: “É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que o artista seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.”

Cartas brancas

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A lei entende que não há como licitar a contratação de um Gusttavo Lima por ser ele – e não há nada de bíblico aqui – um ser único. Afinal, como comparar o preço de Gusttavo Lima com outros “produtos”? Vai licitar Gusttavo Lima com covers de Gusttavo Lima?

Mas cartas-brancas levam a caixas-pretas. Sem precisar licitar nada, já que os sertanejos em questão estão longe de uma consagração crítica mas são carregados nos braços de milhares de fãs, os municípios se sentem encorajados a não prestar contas de seus agro shows, o que dá início a uma série de perguntas. Se a verba destinada à pasta de Cultura não passa nem perto de R$ 1 milhão, de onde sai esse dinheiro? Se for de outras pastas, como Saúde e Educação, a prática se chama desvio de verbas, e é criminosa. Como se dá a contratação? Quem escolhe o artista? Quem determina o valor?

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Os shows municipais não estão livres de burocracia e uma delas exige que os empresários apresentem três notas fiscais comprovando que o preço exigido para tal show já tenha sido praticado em outras praças. O filtro aparentemente digno para tentar evitar um descalabro (não se pode dizer “superfaturamento” porque não há licitação) só acaba apontando para um descalabro endêmico. Afinal, quando uma cidade aceita pagar R$ 1 milhão por um artista ela acaba comprovando que pelo menos outras três já bancaram esse valor. Ou é isso ou as três notas anteriores não estão sendo exigidas, o que também seria um crime. Mas o caldo pode engrossar ainda mais se o foco for colocado sobre relações entre produtores locais contratados pelas prefeituras e empresários do showbiz que praticam os chamados “repasses”, um valor pago “por fora” por empresários agraciados pelas boladas das contratações.

A Lei Rouanet, rebatizada como Lei de Incentivo Fiscal, é um mecanismo criado para irrigar o mercado cultural sem a retirada direta de dinheiro da União seguindo uma lógica simples: um artista que quer lançar seu álbum fazendo shows pelo País (para ficarmos na música) contrata uma produtora para inscrever o projeto na lei especificando objetivos, número de shows, contrapartidas sociais e o destino de cada centavo. Se o governo federal aprovar, o artista fica autorizado a captar o valor junto às empresas privadas. O empresário que pagar a conta, por sua vez, terá descontos na hora de pagar o Imposto de Renda à União.

Escrutínio federal

Há fragilidades e a lei não é à prova de excrescências. Em 2016, um grupo de empresas foi acusado de desviar R$ 21 milhões do mecanismo. Até festa de casamento foi paga. A 3.ª Vara Criminal de São Paulo condenou um dos empresários a 17 anos e 4 meses de prisão e proferiu sentenças a outras 11 pessoas. Mas irregularidades assim são exceção dentro de um oceano de projetos incentivados desde 1991 com a obrigatoriedade do escrutínio federal, algo que só deveria ganhar força diante da farra dos municípios contratantes de shows milionários.

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