BRASÍLIA - Criticado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a campanha eleitoral de 2022, o pagamento de emendas parlamentares sem transparência continuará em 2024 por decisão do Congresso, em valores que somam quase R$ 25 bilhões. No Orçamento deste ano, a falta de transparência se dá em duas frentes: nas emendas de comissão e nas transferências especiais, conhecidas como “emendas Pix”, que juntas representam quase a metade do total de emendas parlamentares.
No primeiro caso, que soma cerca de R$ 16,7 bilhões, os nomes dos autores das indicações são omitidos – tudo o que aparece é o nome do colegiado, e não do parlamentar que patrocinou o envio dos recursos, numa situação similar à do antigo orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão e criticado por Lula. Já nas emendas Pix, fixadas em R$ 8,1 bilhões, os autores são conhecidos, mas o uso do dinheiro se torna opaco. Emendas parlamentares são modificações feitas por deputados e senadores ao Orçamento da União para destinar dinheiro federal a obras e serviços públicos nos municípios onde eles têm votos.
Ao longo da campanha presidencial de 2022, Lula, então candidato, fez duras críticas ao mecanismo do orçamento secreto. Tratava-se do uso das chamadas “emendas de relator-geral”, designadas no Orçamento pelo código RP-9, para distribuir recursos para obras e serviços nas cidades, sem que os verdadeiros autores das indicações fossem conhecidos. Iniciado em 2020, foi usado por Jair Bolsonaro (PL) para ganhar apoio no Congresso. A prática foi banida pelo Supremo Tribunal Federal no fim de 2022.
Um ano depois de eleito, no entanto, Lula viverá situação parecida: Em 2024, o Congresso terá até R$ 53 bilhões em emendas parlamentares. O montante é inédito e foi viabilizado por cortes na principal iniciativa do terceiro mandato de Lula: o novo Programa de Aceleração do Crescimento (o Novo PAC). O valor das emendas representa um aumento significativo, tanto em relação ao proposto pelo Executivo para 2024 (R$ 37,6 bilhões) quanto em relação ao montante de 2023 (R$ 36,5 bilhões). Além disso, o Orçamento de 2024 também poderá ter regras para a execução das emendas, com potencial de reduzir o poder de barganha do Executivo frente ao Congresso.
Lula ainda não sancionou o Orçamento de 2024 aprovado pelo Congresso na última sessão do ano, mas tem poder de vetar a destinação recorde para emendas parlamentares, incluindo para as modalidades sem transparência – a expectativa, porém, é que não faça isso. O prazo para a sanção do Orçamento é até o dia 22 de janeiro.
Um tipo de emenda parlamentar sem transparência foi o que mais cresceu em 2024: as emendas de comissão. Identificadas pelo código RP 8, elas passarão de R$ 6,89 bilhões em 2023 para R$ 16,6 bilhões este ano. O aumento foi feito pelo relator-geral, o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP) e foi viabilizado pelo corte de recursos no Novo PAC.
Assim como no antigo orçamento secreto, as bancadas de comissão tornam impossível saber quem são os verdadeiros autores das indicações: um só parlamentar – o presidente da comissão – negocia com o Poder Executivo como os recursos serão usados. Ele o faz acolhendo sugestões dos demais congressistas, cujos nomes ficam ocultos.
No ano passado, 85% do valor das emendas de comissão foram concentrados em um único colegiado: a Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) do Senado Federal, presidida pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), que foi também o relator do Orçamento de 2023. Formalmente, é como se Castro dispusesse dos R$ 6,5 bilhões da CDR para indicar. Na prática, ele distribuiu o dinheiro entre indicações de vários congressistas, como ele próprio afirma em uma publicação no Instagram. Os nomes dos demais congressistas, no entanto, ficaram ocultos.
Como mostrou o Estadão, Marcelo Castro enviou R$ 38,2 milhões em emendas de comissão para uma obra de esgotamento sanitário tocada pela empreiteira do irmão dele, no município de Floriano (PI). A obra é tocada por meio de um convênio entre a prefeitura local e a Superintendência da Codevasf no Piauí, comandada por um filho do senador. Em 2019, uma auditoria da Controladoria-Geral da União encontrou evidências de superfaturamento de pouco mais de R$ 2 milhões na obra, cujo contrato já foi postergado por 18 aditivos ao contrato original. Castro nega ter sido o responsável pelo envio do dinheiro e diz que não privilegiou o Piauí na distribuição das emendas da CDR.
Em 2024, Marcelo Castro continuará presidindo a CDR e terá à disposição até R$ 4,39 bilhões em emendas de comissão, ou 26,2% do total. Ele terá de dividir poder com o chefe da Comissão de Saúde da Câmara, ainda a ser eleito, que terá R$ 4,53 bilhões à disposição (ou 27,1%). Outras três comissões da Câmara terão mais de R$ 1 bilhão (Desenvolvimento Urbano, Integração Nacional e Esporte). Já a Comissão de Turismo da Câmara terá R$ 950,1 milhões à disposição.
Juntas, as seis comissões controlarão 81,5% do valor total disponível para este tipo de emenda, dando imenso poder de barganha aos seus presidentes dentro do Congresso. Mais uma vez, será virtualmente impossível rastrear os verdadeiros autores das indicações, já que os acordos são informais. Ao contrário da CDR do Senado, os presidentes das comissões da Câmara ainda não são conhecidos; eles devem ser eleitos em março.
Os valores acima são aproximados, e os montantes finais só serão conhecidos em meados de janeiro, quando o texto final do Orçamento de 2024 for divulgado. Durante a votação do Orçamento, no dia 22 de dezembro, os congressistas fizeram pequenas alterações no parecer da Comissão Mista de Orçamento (CMO), por meio de um adendo de plenário.
Em novembro de 2023, o Partido Novo entrou com uma ação no STF pedindo a suspensão da execução das emendas de comissão da CDR, de Marcelo Castro, no ano passado. Para o partido, o fato de Castro controlar a alocação de um grande volume de dinheiro criou “obscuridade em relação aos reais patrocinadores da indicação de recursos”. “Nestes termos, os recursos do RP8 (emendas de comissão) em 2023 estão hiperconcentrados na CDR do Senado, presidida pelo mesmo parlamentar que relatou o Orçamento”, diz um trecho. Atualmente, a ação aguarda manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Para a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), as emendas de comissão representam “o Orçamento Secreto 2.0, turbinado e operante”. “Temos seis comissões ‘bilionárias’, concentrando 81% da verba de R$ 16,7 bilhões. É o balcão de negócios do Congresso Nacional, com um apetite maior e com distorções absurdas”, diz ela. “O que justifica a Comissão de Desenvolvimento Regional (CDR) do Senado ter R$ 4,4 bilhões e a Comissão de Ciência e Tecnologia (também do Senado) ter R$ 800 mil? (...) É uma afronta ao interesse público”, diz ela.
No caso das emendas Pix, o valor para 2024 foi fixado em R$ 8,1 bilhões. Consistem numa ação orçamentária que permite o envio de recursos diretamente para as prefeituras, sem vinculação a um projeto ou obra específico, por meio de emendas individuais (código RP 6). Uma articulação de ONGs e congressistas conseguiu incluir no Orçamento deste ano um trecho demandando que os municípios deem transparência ao uso dos recursos, usando um portal do governo federal. No entanto, regra semelhante já foi descumprida em 2023.
Marina Atoji é diretora de programas da Transparência Brasil, uma das ONGs que trabalharam pela inclusão do mecanismo. A solução adotada tem problemas, diz ela. “Não se colocou (no Orçamento de 2024) a periodicidade com que esses dados têm de ser informados, não se incluiu a obrigação de apresentar um projeto básico (para o uso do dinheiro); ou mesmo um mínimo de elementos descritivos do objeto do gasto. Pode ser que a gente tenha descrições genéricas, que não contribuam tanto para o monitoramento do gasto. Só vendo para saber qual resultado vai gerar”, diz ela.
Além dos R$ 16,7 bilhões para as emendas de comissão, o Orçamento de 2024, expresso na Lei Orçamentária Anual (LOA), também traz R$ 11,3 bilhões para as emendas de bancadas e R$ 25 bilhões para as individuais, totalizando cerca de R$ 53 bilhões. O Congresso também incluiu na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um calendário para a liberação das emendas. Pelo texto, o governo seria obrigado a empenhar os recursos (isto é, reservar para pagamento) até o dia 30 de junho. A regra foi vetada pelo presidente Lula, mas o Congresso pode derrubar o veto presidencial.
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