Integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) participam, a partir desta semana, de eleições para as diretorias regionais e o Conselho Federal da entidade em meio ao desafio de cumprir cotas raciais e de gênero nas chapas inscritas. A regra prevê que metade dos integrantes seja composta por mulheres e ao menos 30% dos concorrentes seja de pretos ou pardos. Mas o cumprimento da cota racial se revelou especialmente complicado para a entidade, que já registrou mais de 200 denúncias de supostas fraudes, e hoje está rachada quanto à aplicação das próprias ações afirmativas.
As denúncias foram recebidas pela Comissão Especial de Mapeamento e Monitoramento da Advocacia Negra na Ordem (Cemmano), órgão da Associação Nacional da Advocacia Negra (Anan) cujo interesse é assegurar que todas as chapas tenham advogados pretos na composição.
Na tentativa de coibir o descumprimento, a Anan decidiu entrar com impugnação em todas as seccionais da OAB, que correspondem às 27 unidades da federação. A ideia era pressionar as comissões eleitorais a dar atenção à regra. Mas, como pelo regulamento esse tipo de pedido deve ser feito pelas chapas adversárias, apenas sete unidades federativas deram retorno à Anan e a maioria rejeitou a abertura de processos de investigação.
Para o presidente da Cemmano, Marcelo Toledo, os casos suspeitos somariam muito mais do que as duas centenas de denúncias registradas. “Muitos (advogados negros) não querem apresentar denúncia, preferem ficar no anonimato”, afirmou Toledo, para quem o porcentual de participação de advogados negros não é apenas uma cota, mas uma reparação. “Defendemos uma maior participação de negros em cargos de liderança. Nós não queremos tirar espaço de ninguém. Se você não se vê representado em uma diretoria, acaba não pertencendo àquela classe que você contribui.”
Algumas chapas pediram o impedimento de concorrentes por supostas irregularidades com base no critério racial. No Paraná, por exemplo, a Justiça determinou a publicação aos concorrentes das declarações raciais de todos os candidatos, alegando a necessidade de transparência para execução de políticas públicas.
Na chapa Artigo 5º, que concorre à diretoria da seccional no Estado, o candidato Rômulo Quenehen se declarou branco quando foi candidato a vice-prefeito de Curitiba em 2020. Já no processo eleitoral da OAB, este ano, ele se apresenta como pardo.
Em resposta ao Estadão, Quenehen afirmou que não mudou o entendimento. “A segregação nunca foi uma preocupação pessoal, e é a primeira vez que me deparo com esta situação esdrúxula de imposição que eu declare minha raça entre branco ou pardo”, disse em nota. “O que existe na verdade é uma imposição social para que o cidadão brasileiro se auto segregue.” Quenehen também enviou fotos e documentos da família, indicando ser descendente de negros.
Para Marcelo Trindade, presidente da chapa Algo Novo e responsável pela impugnação, o suposto descumprimento das cotas revela “falta de respeito com a advocacia”. “Não é uma questão de ser a favor ou não. É uma regra”, diz. O concorrente Romulo Quenehen diz que deve entrar com impugnação contra integrantes da Algo Novo, pois considera que há candidatos que “não aparentam ser pardos”. No Distrito Federal, uma decisão unânime da comissão eleitoral contrariou um relatório feito pela Subcomissão de Heteroidentificação da OAB local, que sugeriu o impedimento de 13 dos 15 concorrentes da chapa Você na Ordem, presidida pela advogada Thais Riedel. A contestação apontava “o claro intuito de burlar a ação afirmativa instituída pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil”.
Thais Riedel ressaltou que é favorável à política de cotas e que considera legítimo o questionamento da Anan. “Jamais fraudaria um processo eleitoral e muito menos usaria qualquer subterfúgio para não cumprir uma regra tão meritória quanto essa. Respeitei a autodeclaração e entendo que não cabe a mim questionar um aspecto tão sensível da vida das pessoas”, disse em nota.
A chapa também questionou o parecer da subcomissão, que segundo ela, fez as análises com base em fotos de internet.
Ao Estadão, o presidente da Comissão Nacional Eleitoral da OAB, Airton Molina, lembra que para esta eleição o critério adotado é a autodeclaração. “As comissões eleitorais seccionais têm que aceitar a autodeclaração, e quando houver impugnação teria que se basear nos elementos que ela tem na ficha de inscrição. Sendo possível levar em consideração o fato fenótipo, que vai nortear a política de cotas em todos os sentidos”, disse. Para o próximo pleito, ele defende que o Conselho Federal nomeie um relator para a matéria e normatize o caso, criando bancas de heteroidentificação.
Esse tipo de critério é o mesmo usado em concursos públicos e processos seletivos para as universidades federais, estabelecido em uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012. Para o presidente da Comissão Especial de Validação da Autodeclaração de candidatos pretos e pardos, da Universidade Federal do Paraná, Paulo Silva, a ideia de se avaliar o fenótipo, e não apenas a herança familiar do candidato, tem como base o fato de que as pessoas são discriminadas no Brasil pela aparência e trata-se, portanto, da maneira com que são reconhecidas socialmente. “O primeiro passo é a autodeclaração, mas ela não é suficiente porque (as cotas) têm uma relação direta com ocupação de espaços de poder”, afirmou.
Para a Anan, a heteroidentificação permite evidenciar os preconceitos e limitações vividos pelos advogados negros. “Não basta você ter ascendência negra. Tem que ter características negras. Quanto mais características, mais vai sofrer racismo, o que significa não poder acessar certos cargos, certos trabalhos”, afirmou Edna Ramos, da Cemmano.
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