BRASÍLIA - ‘Acho que é bom a gente esquecer quem governou esse país até o dia 31 de dezembro’, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a um seleto grupo de políticos em reunião na última quinta-feira, 8, no Palácio do Planalto, em referência a Jair Bolsonaro. A pregação do petista aos aliados que integram o conselho da coalizão de governo, contudo, tem sido descumprida por ele próprio. Dos 16 discursos oficiais feitos por Lula desde a posse em 1º de janeiro, em 14 oportunidades houve alusões ou menções diretas ao antecessor, a quem já se referiu como ‘genocida’, ‘irresponsável’, ‘desumano’, ‘insensato’ e até mesmo como ‘o coisa’.
O Estadão analisou todos os discursos de Lula disponibilizados pelo Palácio do Planalto e identificou que a gestão Bolsonaro está entre as pautas centrais do petista, que investe na retórica ofensiva ao antecessor seja em eventos de lançamento de projetos do governo ou em cerimônias mais descontraídas com aliados de movimentos sociais. O levantamento também indica que, apesar de o ex-presidente ser o alvo preferencial de Lula, é a correligionária Dilma Rousseff (PT) a pessoa mais mencionada em suas apresentações.
A ex-presidente petista foi citada por Lula de forma elogiosa 17 vezes em 8 eventos que contaram com discursos presidenciais. Uma das oportunidades em que elogiou Dilma foi para dizer que, tanto no seu governo como no da companheira de partido, “foi bom para o mercado” ter o “povo vivendo dignamente”. O petista também já se referiu publicamente ao impeachment da ex-governante como “golpe”.
Em outro momento, Lula reduziu as vaias contra a Dilma na abertura da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a uma “classe média alta que conseguiu ter acesso” ao evento.
A defesa de Lula à companheira de partido é um dos fatores que tensionam a relação do governo com os militares. Integrantes das Forças Armadas das mais variadas patentes convergem em ataques ao governo Dilma por, dentre outras medidas, ter apoiado e sancionado a lei que instalou a Comissão da Verdade, cujo objetivo foi apurar os crimes cometidos durante a ditadura militar.
Apesar das sabida ojeriza dos militares à Dilma, Lula já chegou a dizer que as Forças Armadas nunca criaram problemas em seu governo e “não criaram com a Dilma também”.
Se com a aliada de partido há menções recorrentes, Lula citou nominalmente o oponente Bolsonaro apenas 10 vezes. Ao se referenciar ao antecessor, o petista opta por adjetivos e alusões. Figuras como o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, chegam a ser muito mais mencionados que Bolsonaro, com 11 e 14 citações respectivamente.
Uma das ocasiões em que Lula citou o nome do antecessor foi num café da manhã com jornalistas, no Palácio do Planalto, onde disse que “o Exército de Caxias foi transformado no Exército de Bolsonaro”. Para Lula, o aparelhamento da força terrestre foi negativo, sobretudo, porque “todo mundo conhecia o passado do Bolsonaro” como “um cidadão expulso do Exército” por tentar “explodir o quartel”.
O número menor de citações diretas ao nome de Bolsonaro, no entanto, não o eximem dos ataques velados de Lula. O petista disse em viagem ao Rio de Janeiro que nunca imaginou “que um presidente da República fosse capaz de mentir, descaradamente, sobre os benefícios da vacina”. No discurso de posse no Congresso, Lula disse que o País vivenciou o ‘paradoxo’ de ter o Sistema Único de Saúde (SUS) preparado para lidar com emergências sanitárias, mas sofrer com os piores resultados da pandemia de covid-19 por causa da “atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista e insensível à vida”.
“Tudo que a gente fizer para melhorar a vida do nosso povo, tem que ser tratado como investimento! E é pra isso que me dispus a enfrentar esse genocida, ganhar as eleições, para que a gente mude outra vez a história do Brasil”, disse Lula na cerimônia de posse da presidente da Caixa Econômica Federal, novamente em alusão ao período da pandemia gerido por Bolsonaro.
Para o professor de ciência política Sérgio Praça, da Fundação Getúlio Vargas, as investidas de Lula contra Bolsonaro podem ser atribuídas à ausência de uma agenda propositiva da atual gestão e ao fato de as “criticas ao governo anterior terem um prazo de validade” para continuar a gerar capital político positivo.
“Se em julho ele (Lula) continuar a criticar o Bolsonaro vai ficar meio esquisito, então é bom para ele aproveitar esse tempo”, disse. “Ele está aproveitando esse início de mandato em que ainda não há uma agenda propositiva clara. A reforma tributária provavelmente será aprovada, mas pode ser muito distante da proposta que o governo quer. Então, o Lula ainda não tem muito o que apresentar de bom, com exceções como a resposta à crise Yanomami e o possível aumento de bolsas na educação”, completou.
Ainda segundo Praça, as menções elogiosas a Dilma sinalizam uma intenção do PT em utilizar o terceiro mandato de Lula como uma oportunidade de “limpar o nome” da antecessora. O professor relembra que durante a campanha eleitoral de 2022 Lula buscou se desvencilhar da gestão da petista, que deixou o cargo com índices de aprovação abaixo de 10% relacionados à crise econômica do período e ao processo de impeachment deflagrado pelo Congresso.
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