Nomeado secretário nacional de Justiça, o advogado Augusto de Arruda Botelho considera que o principal desafio do órgão nos próximos anos será “pacificar” a relação entre o Poder Judiciário e parte da sociedade brasileira. “O Poder Judiciário e o STF, por ser obviamente a Casa mais alta da Justiça, é alvo de ataques diários por uma parcela da população”, disse Botelho em entrevista ao Estadão. Neste contexto, o secretário observa que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) podem e devem ser contestadas, desde que pela via legal.
Questionado sobre polêmicas envolvendo decisões do ministro Alexandre de Moraes, Botelho destacou que a composição colegiada dos tribunais superiores contribui para o equilíbrio do Judiciário e a interpretação das leis. “O que não se pode fazer em momento algum, e se fez no passado, é um ataque à autoridade que proferiu a decisão, menos ainda um ataque à Corte”, disse.
O secretário admitiu que as autoridades públicas tiveram dificuldades para garantir condições ideais para os presos pelos atos golpistas de 8 de janeiro. “Se há condições que precisam ser melhoradas dessas pessoas, serão. Vamos lembrar que foi a maior operação de polícia judiciária da história do País, são 1.500 pessoas presas num dia só.”
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Uma das competências da Secretaria Nacional de Justiça é promover a Justiça por meio da articulação com outros Poderes e órgãos da sociedade. Como cumprir essa missão em um cenário institucional no qual a judicialização da política levou à politização da Justiça?
Essa interlocução é um dos grandes desafios da Secretaria Nacional de Justiça, já que o Judiciário se transformou, principalmente nos últimos quatro anos, no protagonista de uma série de momentos históricos do País. Por outro lado, a gente tem que reconhecer o papel fundamental que o Judiciário teve, especialmente o Supremo Tribunal Federal, na manutenção da democracia e do estado democrático de direito.
Decisões judiciais podem e devem ser contestadas. Uma das belezas da Justiça, inclusive, é (haver) uma diferente interpretação, com fundamento, com conhecimento legal, de uma decisão judicial ou de uma lei. A forma de se mostrar o descontentamento disso é recorrendo. O sistema de recursos é a forma mais clara de mostrar os descontentamentos. Ou escrever artigos. Completamente diferente do que aconteceu nos últimos anos, em que a discordância de uma decisão judicial automaticamente virava um ataque à autoridade que proferiu essa decisão, à própria Corte e até a incitação de crimes e a prática efetiva de crimes voltados a autoridades do Poder Judiciário.
Então, o desafio é gigantesco, porque o poder Judiciário e o STF, por ser obviamente a Casa mais alta da Justiça, são alvos de ataques diários de parcela da população. Um dos desafios da Secretaria Nacional de Justiça, ao fazer essa interlocução, é pacificar. Não há aqui nenhum tensionamento entre governo federal e o Judiciário, muito pelo contrário, a harmonia é presente. O que há é na sociedade brasileira, aí que mora o desafio da Secretaria Nacional de Justiça de alguma forma trazer um equilíbrio, ainda que com discordâncias, mas um equilíbrio dentro das linhas da Constituição.
Algumas decisões muito recentes, como, por exemplo, as do ministro do STF Alexandre de Moraes, têm sido contestadas e envolvem a questão dos atos do dia 8 de janeiro. Não cabe à Secretaria essa avaliação em si, mas como o senhor vê essas decisões? Na sua avaliação, esses momentos mais tensos devem gerar mais preocupação sobre decisões de um lado e de outro ou limites para um lado e para o outro?
Eu volto à reflexão anterior. Uma das belezas do sistema de Justiça e do Poder Judiciário é ter elementos técnicos do ponto de vista legal para discordar de uma decisão judicial. Isso faz parte do sistema de Justiça e que bom que é assim, principalmente decisões que podem ser tomadas em um colegiado. O próprio sistema colegiado de tribunais superiores, e muitas vezes as decisões não são unânimes, mostra o quanto é possível, dentro dos limites da lei, discordar de uma decisão. Então, com relação às decisões do ministro Alexandre de Moraes, elas podem ser objeto de críticas técnicas, porque não se faz aqui necessário que haja uma unanimidade de Interpretação da lei. O que não se pode fazer em momento algum, e se fez no passado, e nós trabalharemos para que isso não aconteça no futuro, é um ataque à autoridade que proferiu a decisão, menos ainda um ataque à Corte. Discordou da decisão de qualquer ministro? Recorra, escreva artigos. Não ataque a Corte e não ataque o ministro.
O senhor é a favor de uma revisão da Lei de Drogas. Quais mudanças considera necessárias? Acredita que há disposição do atual governo para isso?
Como jurista, eu tenho um posicionamento absolutamente consolidado em relação ao fracasso da política de drogas do Brasil. Nós temos uma Secretaria Nacional aqui no Ministério da Justiça, cuja titularidade hoje é da secretária Marta Machado, que é uma das maiores especialistas no tema. Portanto, é trabalho do Ministério da Justiça, através dessa Secretaria, propor alterações nesta política. Do ponto de vista legal, de legislação, eu acompanho a manifestação que já foi dada mais de uma vez pelo ministro Flávio Dino, no sentido de que há no Supremo Tribunal Federal a pendência de julgamentos que tratam especificamente da Lei de Drogas. Portanto, é necessário que se aguarde, e há uma sinalização de que esse julgamento que está parado seja recolocado em pauta, e a partir do momento dessa análise do Supremo, que se readeque e se faça alterações de uma política nacional maior. Mas como esse tema está sendo tratado pelo Supremo Tribunal Federal, eu concordo com o ministro e entendo que nós temos que aguardar essa manifestação do Supremo para partir daí porque senão corre o risco de haver políticas e movimentações conflitantes que depois vão ter sua constitucionalidade contestada. Por isso, essa cronologia que o ministro imprimiu no tema para mim é mais do que acertada.
O senhor defende uma reestruturação do nosso sistema penitenciário? Como resolver o problema da superlotação dos presídios?
Um dos vários acertos do ministro Flávio Dino foi a criação, aqui no Ministério da Justiça, de uma Secretaria de Políticas Penais. Em substituição a apenas um Departamento Penitenciário, nós temos agora uma secretaria que pensa o antes, o durante e o depois, porque o sistema penitenciário tem de ser visto dessa forma. Primeiro, nós temos que pensar na prevenção, nós temos que pensar na ressocialização, e ela acontece durante o sistema penitenciário, mas também tem de pensar no depois, porque se não pensa na reinserção desse apenado na sociedade e no mercado de trabalho, o índice de reincidência vai aumentar. Tem até um prazo: os 90 dias posteriores à colocação de liberdade de uma pessoa são essenciais para evitar que essa pessoa volte a delinquir. É preciso um olhar muito maior do que simplesmente olhar o dia a dia do sistema penitenciário, que vive uma situação difícil no Brasil inteiro - temos superlotação, temos situações insalubres, temos uma série de conhecidos desafios. Mas a ampliação desse tema na forma como o ministro Dino trouxe é o primeiro passo para uma revisão e para o melhor entendimento de uma melhor visão completa. Não apenas resolver o problema local no presídio A ou no presídio B. Não, é um problema muito maior, interdisciplinar e transversal. Nós precisamos discutir e implementar políticas para a saída do preso, senão a reincidência vai aumentar e nós continuamos nesse círculo vicioso de cadeia, liberdade e cadeia.
Deputados bolsonaristas reclamam das condições de acomodação dos presos pelos atos golpistas em Brasília e pedem garantias dos direitos humanos. Qual é o papel do Estado num caso como esse?
Eu fico feliz que alguns parlamentares que jamais, em hipótese nenhuma, tiveram um olhar de garantia de direitos fundamentais para todo e qualquer cidadão agora neste momento façam esse pleito. Essa é a primeira observação que eu faço. Agora, garantias de direitos fundamentais, como a presunção de inocência e o devido processo legal, elas valem para absolutamente todas as pessoas, independentemente de culpa, independentemente da gravidade do crime pelo qual eles estão sendo investigados ou processados, inclusive para aqueles que tentaram um golpe de Estado no dia 8 de janeiro. Então, se há condições que precisam ser melhoradas dessas pessoas, serão. Vamos lembrar que foi a maior operação de polícia judiciária da história do País, são 1.500 pessoas presas num dia só. É evidente que isso tem um impacto gigantesco na estrutura do Poder Judiciário, do sistema penitenciário, dos atores do sistema de Justiça. Em 8 de Janeiro, a Justiça estava em recesso. Não havia muitos juízes em Brasília, não havia advogados, defensores públicos. De uma hora para outra 1.500 pessoas são presas, é evidente que as condições podem não ser as condições ideais, tanto de atendimento com advogados, quanto de agilidade na análise de pedidos de liberdade, condições em que essas pessoas ficaram presas. De fato, foi um momento do ponto de vista logístico e estrutural absolutamente atípico. Mas não é por isso que direitos e garantias fundamentais não têm de ser respeitados. Condições mínimas têm de ser respeitadas independentemente do autor do crime e do crime pelo qual ele está sendo investigado processado.
Como está o processo de extradição de Allan dos Santos? Por que ele não está ainda no Brasil?
O DRCI tem, por bem, não comentar casos concretos. A informação, até onde eu posso informar, é que toda a tramitação burocrática que compete ao DRCI foi concluída. Ao DRCI, nesse momento, não cabe mais nada a fazer.
Qual é a herança deixada por Vicente Santini na Secretaria Nacional de Justiça? Existem outros atos dele a serem revistos?
Vou começar pelo básico. Na semana passada eu fiz uma reunião com todos os coordenadores e diretores do DRCI (Departamento Nacional de Cooperação Internacional). Cerca de 30 pessoas. Fiz uma apresentação dos desafios e abri a palavra para que todos esses servidores, policiais federais, servidores de carreira, fizessem comentários e sugestões. Na terceira ou quarta intervenção, uma servidora diz o seguinte: ‘Secretário, estou aqui há quatro anos e é a primeira vez que um secretário vem aqui, a primeira vez que um secretário vem ouvir a gente, vem fisicamente no DRCI’. Então, diante disso que parece algo corriqueiro, imagina o tamanho do desafio que nós temos aqui? Não é simplesmente uma questão de revisão, é uma questão de motivação necessária. O DRCI, assim como Demig (Departamento de Migrações), trata de temas extremamente sensíveis. Se você pegar o Demig, por exemplo, cuida de toda a fatia de refúgio, migração, temas extremamente sensíveis, e são servidores que eu fiquei muito impressionado com a capacidade, a qualidade técnica e os currículos. São especialistas, estão lá porque querem realmente fazer diferença, mas passaram por um período de quatro anos aqui e que ficaram, vou dizer assim, esquecidos. Essa reflexão dessa servidora, ela pode parecer algo meio lúdico, mas é extremamente preocupante, em quatro anos nenhum secretário nacional de Justiça foi visitar um dos departamentos que ele comanda.
Haverá alguma ação imediata no que se refere à política nacional sobre refugiados?
A implementação de uma política nacional de imigração, refúgio e apatridia é uma reivindicação da sociedade civil unânime desde a edição da lei. O artigo 120, que prevê a criação dessa política nacional, nunca foi implementado, o que faz com que o Brasil sempre neste tema seja reagente a um fluxo, a uma demanda. Então surge uma demanda de haitianos, nós vamos lá; venezuelanos, agora temos a questão dos afegãos no aeroporto de Guarulhos. Então a política brasileira sempre foi reagente casuística ao momento. Precisa se criar, e já deveria ter sido implementado, uma política nacional. A importância do tema é tão grande que o ministro Flávio Dino essa semana criou, através de uma portaria, um grupo de trabalho coordenado aqui pela Secretaria Nacional de Justiça, mais especificamente pelo Demig, para iniciar a criação dessa política nacional. Qual é o primeiro passo disso? Nós estamos discutindo ainda o formato, mas tem de passar primeiro pela participação de toda a sociedade civil que trabalha no tema, ACNUR, Cáritas e tantas outras. Por isso que precisa ser uma política nacional, porque nós precisamos da participação direta de governos e municípios. Você pegando o caso da Venezuela. Você tem 200 mil venezuelanos que entraram aqui, eles hoje estão presentes em 93 municípios do Brasil. Se você não tiver uma articulação, e essa articulação você só faz criando uma política nacional, do governo federal com os municípios onde estão essas pessoas, nós estamos terceirizando uma questão, que é um acolhimento e que está previsto na lei, para um outro agente, para um governo e para o município. Então é preciso partir daqui essa política nacional, então o ministro Dino, sensível a isso, criou esse grupo de trabalho. Nós a partir da semana que vem começaremos uma série de encontros e discussões, até porque tem um prazo relativamente curto de 60 dias para apresentar um primeiro plano para a implantação dessa política nacional.
Noticiou-se muito no início do governo a influência do grupo Prerrogativas. Qual é o papel, se é que tem um papel, do Prerrogativas nesse governo?
Não (terá). O Prerrogativas é um grupo de WhatsApp extremamente ativo, com mais de 250 pessoas. Eu participo do grupo há alguns anos, é um grupo plural, com discussões técnicas e políticas extremamente relevantes. O papel do Prerrogativas, na verdade, não é um papel institucional, porque institucionalmente o Prerrogativas não existe. É que dentro do grupo de WhatsApp há juristas bastante experientes, atuais ministros, ex-candidatos à Presidência da República, é um grupo muito plural. Então, não vou dizer que o grupo tem uma influência, as pessoas que participam do grupo são, em sua especialidade, em sua área de trabalho, pessoas de destaque.
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