‘Democracia está em risco e carta representa mudança de rumo’, diz diretor da Faculdade de Direito

Celso Campilongo admite surpresa com alta adesão ao manifesto preparado no Largo de São Francisco, que já conta com mais de 300 mil assinaturas em defesa do processo eleitoral e do TSE

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Foto do author Beatriz Bulla
Atualização:

Em fevereiro, Celso Campilongo assumiu a Diretoria da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo com um discurso no qual disse que a centenária escola estaria “forte e preparada” para defender a democracia do País. Ele não pensava, no entanto, que viveria os últimos dias do mês de julho da forma como eles têm sido, com a mobilização de mais de 300 mil pessoas em torno de um movimento preparado dentro do Largo de São Francisco - o qual, inicialmente, Campilongo imaginou que angariaria 100 ou 200 apoiadores.

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“Eu preferia mil vezes não estar nessa situação. Acho que a democracia brasileira está em risco, sim”, diz o diretor, nesta entrevista ao Estadão. O risco, segundo ele, vem não só de ameaças do Executivo, mas também de “milícias digitais” que atacam as instituições brasileiras. Em 24 horas, a nova carta aos brasileiros em defesa do processo eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral e da democracia pulou de 3 mil para 100 mil assinaturas.

O diretor da Faculdade de Direito da USP diz que a dimensão do engajamento em torno do movimento indica uma mudança de rumo no País, assim como a carta aos brasileiros de 1977 representou. “É uma inflexão, uma manifestação muito vigorosa. É um aviso: a sociedade civil está muito alerta.” A presença da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) na iniciativa, segundo ele, é a prova.

Campilongo responde à crítica do presidente Jair Bolsonaro, que disse não precisar de “cartinha” para defender a democracia. “De gripezinha a cartinha, querem diminuir o Brasil à condição de paisinho”, diz o jurista. A insistência nesta retórica, segundo ele, só faz o número de adesões crescer. Para o dia 11 de agosto, a Faculdade se prepara para receber ao menos 5 mil pessoas no pátio, no salão nobre e no Largo de São Francisco, dispostas a declarar a confiança na justiça eleitoral e nas urnas.

O manifesto saltou de três mil para 100 mil assinaturas em menos de 24 horas. O sr. imaginava essa repercussão?

Nosso sistema de adesões está completamente congestionado. Quando subimos o documento, às 17h de segunda-feira, tínhamos 3,1 mil assinaturas. Na terça-feira, às 8h da manhã, 30 mil novas. No final da manhã, 60 mil assinaturas. É acima de qualquer expectativa mais otimista que eu pudesse ter.

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Por que invocar a carta de 1977? No que os dois momentos se assemelham?

Nós temos semelhanças e diferenças. Vou começar pelas diferenças. Em 1977 tínhamos muito medo da ditadura, de participar de atos públicos. A UNE era proibida. A peruada (festa tradicional da Faculdade de Direito) ficou proibida. As pessoas ficavam com medo de, num ato público, serem filmadas ou fotografadas e que essas imagens fossem cedidas ao DOPS. Hoje é impossível fazer ato público que não seja filmado, fotografado por todos os participantes simultaneamente. Por aí já vemos a diferença. Organizar um ato era algo que custava meses de preparação. Hoje, eu coloco o manifesto online e tenho, de um dia para o outro, 100 mil assinaturas. O grau de organização tecnológica faz com que a dinâmica política mude completamente.

Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP, diz que sociedade civil está em alerta para as eleições de outubro Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

E as semelhanças?

Vejo que 1977 representou uma mudança de rumo, uma mudança de direção na luta pela reconquista da democracia. Foi um momento de inflexão. Estávamos numa direção e parece que, com a Carta aos Brasileiros, aquilo ganhou uma força capaz de contagiar a sociedade brasileira e reforçar muito a luta pela democracia. As primeiras manifestações do empresariado paulista neste período contra a ditadura militar começaram a ganhar impulso a partir daí. Elas vieram a público no final de 77 e em 78. A Fiesp começou a se manifestar contra a ditadura militar neste período. Aquilo desencadeou um processo de afirmação da necessidade do retorno à democracia, de que as pessoas ganhassem coragem, voz, e isso atingiu a classe empresarial, a classe trabalhadora. Isso desencadeou uma fortíssima luta.

A carta atual está num contexto muito diferente, mas também tem significado de um momento de inflexão, de um momento de mudança de rumo. A manifestação mais chamativa dessa mudança de rumo são as adesões do meio empresarial, da Fiesp, de grandes bancos e empresários. A Fiesp estará aqui no dia 11 de agosto. Isto tem um alcance extraordinário. Estes grupos que nos procuram, são várias entidades, se aperceberam de que é o momento de se tomar uma posição muito firme. Nisso, é muito parecido com 77. Significa uma inflexão, uma manifestação vigorosa em defesa da justiça eleitoral, da democracia, da legalidade. Aquela carta de 77 mudou o ritmo da luta pela conquista da democracia e tenho a sensação de que a manifestação que está sendo gestada tem um efeito muito parecido, é um aviso: a sociedade organizada está muito alerta. Não é que a sociedade civil estivesse adormecida, ela estava atenta, mas parece que faltava algo que pudesse aglutinar essas forças, fazer com que essas forças aflorassem de maneira vigorosa.

Por que agora e por que esta é diferente das outras?

Esta teve uma simbologia especial, em primeiro lugar pela presença de entidades empresariais, pela rapidez com que as adesões estão ocorrendo, pela simbologia de se fazer uma ato na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no dia 11 de agosto. A escola tem uma tradição, tem um peso, teve esse peso em 77 e está oferecendo uma contribuição importante em 2022.

Mas outros manifestos em defesa da democracia já surgiram durante o governo Bolsonaro e tiveram adesão de empresários. Isso não fez com que os ataques contra o sistema eleitoral diminuíssem, pelo contrário. O que o sr. espera com essa mobilização mais vigorosa? Acredita que esses ataques podem cessar?

Não cessarão, não. Infelizmente não cessarão, mas esse pessoal que fica falando mal da justiça eleitoral brasileira vai pensar duas vezes em continuar com esse discurso, que é um discurso que inclusive politicamente questionável, porque perde voto, é um discurso muito desacreditado. Coisas como ouvimos de que os bancos assinaram a carta porque estão perdendo dinheiro com o PIX beiram o ridículo. É o grotesco completo ter um tipo de resposta a uma manifestação em defesa da democracia com esse grau de vulgaridade, de desorientação. Isso reforça e muito as adesões à carta, esta mobilização intensa a que estamos assistindo.

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Além do dia 11 de agosto e sua simbologia, não podemos esquecer da dinâmica do calendário político das próximas semanas. Estamos nos aproximando do bicentenário da independência, das eleições, e estamos assistindo diariamente, de um lado, o acirramento do debate político como ocorreu com os embaixadores (reunião de Bolsonaro com diplomatas estrangeiros).

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A carta estava andando normalmente e já estava sendo pensada muito antes, mas a reunião dos embaixadores foi um estopim, a partir dali a coisa explodiu. Então, por que ganha dimensão que não ganhou ano passado? O manifesto do CDPP no ano passado teve adesão de muitos empresários que agora voltaram a aderir, mas no ano passado a Fiesp não subscreveu. Está subscrevendo agora. Já é um sinal de mudança, de inflexão. São pequenas coisas que somadas oferecem um quadro completo.

O que estamos fazendo é suprapartidário. Ninguém deveria estranhar, reclamar ou protestar. Todos que se entregam a um processo eleitoral deveriam prestigiar as entidades que devem conduzir um processo eleitoral. É assim que funcionam as democracias. Não haveria razão alguma para que ninguém reclamasse de documento em defesa da democracia. Tem uns e outros que não gostaram, paciência. É suprapartidário. Não faz menção a nenhum nome.

Bolsonaro disse não se amedrontar por uma “cartinha”. Como o sr. responde?

De “gripezinha” a “cartinha”, querem diminuir o Brasil à condição de “paisinho”. Há dois dias ouvimos críticas inconsistentes à carta e vemos o número de adesões crescer de forma explosiva. Apenas ontem, o site da Faculdade de Direito da USP recebeu seis milhões de visitas. Não estamos dando conta da demanda. O Brasil não aceita diminuições de sua Democracia e de suas Eleições.

Por que não citar Bolsonaro nominalmente na carta?

É uma questão de estilo, de ponderação, de prudência. São elementos que caracterizam a postura de um juiz, de jurista, de advogado. Evitar os arroubos, os excessos e agressões gratuitas e desnecessárias caracteriza também o próprio perfil histórico da faculdade de direito. A Faculdade de Direito tem sempre um perfil forte e intransigente de defesa da legalidade, mas não parecido com esta violência política, com o bate boca de baixo nível que temos visto nos últimos anos, com fake news, com agressões, desqualificações, com palavrões, não é o estilo jurídico. E procuramos uma linguagem capaz de aglutinar, de atrair todos os setores. Eu não fui o redator, mas tiro o chapéu. Aplaudo os que redigiram o documento, porque é muito ponderado, o que permite adesão de artistas, empresários, trabalhadores, estudantes, todos aderem. Não dá para recusar documento sem arroubos.

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O sr. avalia que a democracia está em risco? Se sim, como se sente em fazer um ato em defesa da democracia, depois de ter acompanhado a redemocratização…

Eu preferia mil vezes não estar nessa situação. Acho que a democracia brasileira está em risco, sim. Temos manifestações no executivo que deixam claro porque as pessoas estão preocupadas. São falas como “não vou cumprir decisão judicial”, “esta é a última vez”, “não estique mais a corda”. São todas aberrações, são inadmissíveis. Mas partem também de grupos organizados na sociedade civil que funcionam como milícias digitais que fazem, nas redes sociais, uma guerrilha de difamação das instituições, de mentiras contra personalidades, de ataques gratuitos. Tudo isso solapa a democracia, desvirtua a formação da opinião pública.

No livro “Estado de Direito Já”, o ex-ministro José Carlos Dias descreve que sofreu “muitas decepções” com “desculpas para recusar” assinar a carta de 1977. O senhor teve recusas? Decepções?

Foram pouquíssimas as recusas que tivemos. Tivemos alguns também poucos arrependimentos: alguém que assina e depois fala que está sofrendo pressão no trabalho, pede para retirar o nome. Foram poucos. Temos que respeitar, não é por conta disso que vou agredir ou sair atirando em quem não concorda com a carta. Tudo isto foi feito com muita naturalidade. Por conta disso, as adesões devem crescer de forma exponencial daqui para frente, não sei nem se meu site aguenta.

Como nasceu a ideia de realizar os atos em defesa do sistema eleitoral e da democracia, desta forma?

Isto foi um conjunto, uma somatória de esforços e coincidências, movimentos convergentes. Começou aqui, na Faculdade de Direito, por uma sugestão do diretor que me antecedeu, o professor Floriano de Azevedo Marques Neto.

Nossa pauta era fazer um evento que fosse de homenagem aos tribunais superiores, especialmente ao Tribunal Superior Eleitoral, ao nosso sistema eleitoral, à legislação eleitoral, às urnas eletrônicas e à importância de se confiar no resultado e na legitimidade das eleições. A ideia era, com esta pauta, realizar um ato na faculdade com diretores de faculdade de direito. Eu convidei meia dúzia: eram os diretores da PUC, Mackenzie, FGV, Insper, Unesp e USP de Ribeirão Preto. Todos aceitaram discutir essa pauta.

Depois disso, fui procurado por um grupo de antigos alunos da faculdade, capitaneado por dois conselheiros do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Dimas Ramalho e Roque Citadini, por um procurador do Ministério Público de Contas de Contas, Thiago Pinheiro Lima, também pelo ex-procurador geral de Justiça de São Paulo, Luiz Marrey, e pelo juiz federal Ricardo Nascimento. Eles tinham uma nova carta aos brasileiros. Contei que estávamos pensando em organizar um evento na faculdade com esse espírito suprapartidário, que não adotasse tom radical, então, se quisessem ler esta carta no pátio, poderiam fazê-lo tranquilamente. Falei: “vamos juntar umas 100 ou 200 assinaturas e subir no site da faculdade”. Veja que eu sou ruim de conta!

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Quando entrou a conversa com a Fiesp?

Mais ou menos na mesma oportunidade recebemos um convite da Fiesp. Foi a terceira coincidência. O presidente Josué (Gomes da Silva) nos convidou para um almoço e nos disse que estava com uma pauta parecida. Ele queria fazer algo na primeira quinzena de agosto e sugeriu juntar esses eventos. Era exatamente o que nós estávamos pensando fazer na faculdade de direito, e é exatamente o que um grupo de antigos alunos nos trouxe. As coisas foram muito complementares.

E quando nomes de 1977, como de Miguel Reale Júnior, se juntaram?

Os vínculos na faculdade de direito entre antigos alunos, professores, são vínculos muito fortes. Temos muitas redes. A partir do momento que começamos a organizar uma coisa dessa, começa-se a criar uma corrente, um círculo virtuoso. Começaram a aparecer personalidades, como é o caso do Flávio Bierrenbach, do professor Miguel Reale Júnior, que foram signatários da carta de 1977. A articulação junto ao meio empresarial e religioso, quem costurou foram especialmente Oscar Vilhena Vieira, Carlos Ari Sundfeld, da FGV, e o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga.

Houve algum contato com ex-presidentes que não são candidatos, como Michel Temer, FHC…?

O trabalho está bastante descentralizado. Não duvido que outros captadores tenham feito estes contatos, mas seriam todos muitíssimo bem-vindos. Se o presidente Temer, inclusive antigo aluno da faculdade, FHC ou quem estiver disposto, quiser aderir, é claro que estaremos de braços abertos para receber a todos eles.

Quantas pessoas o sr. espera?

Você já viu que não sou bom de estimar números… (risos). Mas duvido que tenhamos menos de 5 mil pessoas. Isso significa lotar o salão nobre, lotar o pátio e ter bastante gente na frente da faculdade. Queremos que isso tudo ocorra em ambiente de tranquilidade, virão os que acreditam na democracia, nas urnas. As condições de segurança, tranquilidade e convergência de valores permitirão um ato pacifico, suprapartidário e sobretudo cívico.

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