BRASÍLIA – A desconfiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a atuação das Forças Armadas é vista na caserna como um pedido de divórcio litigioso. Embora a relação entre Lula, o PT e os militares nunca tenha sido boa, deteriorando-se ainda mais no governo de Dilma Rousseff, a invasão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) por pouco não fez com que o antigo estremecimento virasse ruptura.
Em conversas reservadas, conselheiros de Lula com trânsito nas Forças Armadas dizem que a hora é de virar a página, e não de “caça às bruxas”. Argumentam que isso não significa o arquivamento de punições aos atos de vandalismo praticados no domingo, 8, na Praça dos Três Poderes. Ao contrário: na visão de ex-ministros da Defesa, como Nelson Jobim, Raul Jungmann e Aldo Rebelo, as penas para quem cometeu crimes precisam ser duras e exemplares, mas o discurso de Lula deve promover o distensionamento.
A pressão da cúpula do PT para Lula demitir o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, contraria as Forças Armadas, que hoje o veem como único nome capaz de apaziguar a relação dos militares com o Planalto. Se antes a caserna encarava o político Múcio com pé atrás, hoje ele é considerado como uma espécie de fiador da estabilidade. A portas fechadas, oficiais dizem que a eventual saída de Múcio pode agravar a crise. Na outra ponta, dirigentes do PT afirmam que, se Lula não desbolsonarizar as Forças Armadas, os militares tentarão “tutelar” o governo.
Três generais ouvidos pelo Estadão, sob a condição de anonimato, se mostraram preocupados com a insistência do PT em mudar o currículo das academias militares para introduzir ali temas referentes a direitos humanos. Além disso, o partido quer que a expressão “revolução de 1964″ seja substituída por “golpe” no material escolar.
Na economia, as Forças Armadas são contra a criação de uma moeda comum do Mercosul. A discussão já provocou ruídos. O governo alega que a ideia não diz respeito à adoção de uma cédula única, como o euro. As conversas giram em torno da possibilidade de se estabelecer uma moeda comum, que seria usada em negociações comerciais entre integrantes do bloco sul-americano. Mesmo assim, militares acham que a proposta fere a soberania nacional.
O sigilo do caso Pazuello
As queixas não param aí. Há um mal-estar na caserna com o possível levantamento de sigilo do processo administrativo aberto pelo Exército contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que fez uma gestão desastrosa à frente da pasta. O ministro do STF Gilmar Mendes chegou a dizer, à época, que o Exército estava se associando a um “genocídio” ao aceitar teses negacionistas na condução da pandemia de covid-19.
Agora, a Controladoria Geral da União (CGU) deve determinar a divulgação, na íntegra, do processo que apurou a participação de Pazuello – hoje deputado federal eleito – em ato político no Rio, em 2021.
A tendência do governo de autorizar a abertura desse sigilo é encarada pelas Forças Armadas como sinal de que existe um “terceiro turno” em vigor, com consequências imprevisíveis. “Pelo amor de Deus, acabou a eleição de 2022. Entendam definitivamente isso”, pediu o ministro da Justiça, Flávio Dino, nesta sexta-feira, 13, mandando recado para radicais bolsonaristas que não aceitam o resultado das urnas.
Na prática, desde que Dilma abriu a Comissão da Verdade, em 2011, para investigar abusos cometidos contra direitos humanos na ditadura, o relacionamento dos militares com o PT parece caminhar para um acerto de contas. Agora, o retorno da presidente cassada a cerimônias do novo governo é motivo de desconforto entre oficiais de alta patente, que temem sua influência sobre Lula.
No último dia 2, por exemplo, Dilma discursou na posse do advogado-geral da União, Jorge Messias, no Planalto. Em 2016, quando era subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Messias ganhou notoriedade após o então juiz Sérgio Moro, atualmente senador eleito, tirar o sigilo de uma interceptação telefônica que o citava. Na conversa grampeada, Dilma dizia a Lula que “Bessias” estava levando a ele o termo de posse na Casa Civil, para assinar em caso de necessidade. O áudio levou Gilmar Mendes a suspender a nomeação de Lula. Pouco tempo depois, Dilma sofreu impeachment.
Passaram-se mais de seis anos desde então, mas a relação entre Lula, PT e Forças Armadas dá sinais cada vez mais claros de desgaste, que muitos consideram incontornável. O endurecimento do presidente com os militares, após as depredações de domingo, foi comemorado pela cúpula do partido e visto com apreensão por algumas alas da caserna. “As Forças Armadas não são poder moderador, como pensam que são”, disse Lula em café da manhã com jornalistas, nesta quinta-feira, 12.
Sem fazer distinções, o presidente admitiu não querer a seu lado nem mesmo um ajudante de ordens militar, por absoluta falta de confiança. “Como vou ter uma pessoa, na porta da minha sala, que pode me dar um tiro?”, perguntou.
Além disso, dirigentes do PT não param de “fritar” Múcio. Alegam que ele jamais poderia chamar os acampamentos de bolsonaristas em frente aos quartéis de “democráticos”, como fez, nem dito ter parentes abrigados nos protestos. Ali ficou evidente a cisão dentro do governo. Para Flávio Dino, as aglomerações diante dos Q.Gs eram “incubadoras de terroristas”.
Na avaliação de Lula, o Exército agiu no domingo apenas para proteger militares da reserva e suas famílias, que se instalaram diante do Q.G de Brasília, pedindo intervenção militar. Em novembro do ano passado, a filha do general Eduardo Villas-Bôas, ex-comandante do Exército, chegou a postar nas redes sociais uma foto da mãe, Maria Aparecida, naquele acampamento.
A minuta do golpe na prateleira
Lula não tem dúvida de que havia um golpe em curso, uma conspiração para derrubá-lo, e já avisou que irá “até o fim” das investigações, com o objetivo de descobrir quem estava por trás da ofensiva para tomar o poder.
A minuta de um decreto para Bolsonaro instaurar estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reverter o resultado das eleições serviu para respaldar a suspeita do governo. A Polícia Federal apreendeu o que foi batizado como “minuta do golpe” nesta quinta-feira, 12, na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
O presidente está convencido de que militares facilitaram a entrada de vândalos no Planalto e foram coniventes com o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. Com todos sob desconfiança, o clima ainda é de tensão e o papel de Múcio tem sido descrito como o de “um algodão entre cristais”
Após ser anunciado como ministro, Múcio somente conseguiu ser recebido pelos comandantes do Exército e da Aeronáutica depois de 15 dias. Os encontros só ocorreram depois da interferência de Bolsonaro, que telefonou para os subordinados e disse que o ex-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) era “gente boa”.
Bolsonaro conhece Múcio desde que os dois eram deputados federais. Sempre gostou dele, tanto que mais de uma vez o convidou para ser ministro de qualquer pasta, a escolher. Múcio nunca aceitou.
Após a vitória de Lula, os comandantes das três Forças, indicados por Bolsonaro, queriam antecipar a saída dos cargos para 23 de dezembro. O gesto de hostilidade foi planejado para que ninguém prestasse continência ao petista.
Foi Múcio que conseguiu demovê-los da ideia, depois de conversar com o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e também com todos os comandantes, menos com o da Marinha, Almir Garnier. O almirante não só não o recebeu como não participou da tradicional cerimônia de passagem de comando da Força.
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