A descriminalização do porte de maconha pelo Supremo Tribunal Federal (STF) afetará pouco a hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC) no mercado do crime. Essa é a opinião do diretor de Pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular da Sciences Po (CEE - Centre d’Études Européennes et de Politique Comparée, em Paris), Gabriel Feltran. Ele pesquisou a atuação do PCC nas periferias das cidades e os efeitos da chamada guerra às drogas. “Essa guerra entrega então nossos jovens às facções, para que elas selecionem os melhores para suas redes. Os restantes, agora ex-presidiários e sem alternativa alguma exceto a conversão religiosa, vão para ruas, cracolândias e comunidades terapêuticas”, disse. Feltram afirma aqui que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sempre evitou tomar posição na área de Segurança Pública. E assim, um governo que deveria apresentar uma alternativa longe do punitivismo populista e do militarismo reinantes continua um modelo esgotado. Lei a entrevista.
O senhor já disse que nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. ’Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes’. Como chegamos aqui?
Não percebemos que os problemas da segurança mudaram de natureza. Há 40 anos, eles eram a delinquência, os pequenos roubos e o microtráfico. Sujeitos pauperizados roubavam correntes ou videocassetes, fumavam maconha na praça. Bastava reprimir esses “marginais”, com a polícia ou justiceiros, e a cidade toda parecia ter paz. Por isso, não tínhamos muros. Hoje, falamos de mercados ilegais transnacionais, que acumulam centenas de bilhões de dólares por ano, protegidos por armamento pesado e que remuneram a atividade criminal de forma global. Facções, máfias e carteis controlam cadeias de valor integradas à economia oficial e a indústria da proteção – seguros, segurança privada, armamentos – só cresce. Não adianta mais reprimir o marginal, o pequeno operador. Mas nossa segurança ainda está nesse paradigma. Parece que é só isso que se poderia fazer e, quanto mais dá errado, mais se pede recursos para fazer mais do mesmo. Um ciclo perverso, caríssimo e extremamente ineficiente que produz insegurança para todo mundo.
Qual a responsabilidade do governo Lula e de Alckmin nesse estado de coisas? O que falta ao governo federal?
Esse deveria ser um governo para apresentar uma alternativa, um outro modelo de políticas de segurança, longe do punitivismo populista e do militarismo reinantes. Eu tenho cobrado o presidente Lula a tomar posição na área, o que ele sempre evitou. Ele é a liderança política que poderia pautar políticas que começassem a reverter o desastre que estamos vivendo. Uma alternativa ao desastre securitário que vivemos. Há gente capaz nos ministérios. O vice-presidente tem experiência e iniciativa na área, embora o modelo implementado em São Paulo – ainda baseado em encarceramento e ostensividade – esteja claramente esgotado.
Em um artigo recente você escreveu: ‘Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina’. Como a guerra às drogas fortalece o PCC?
Jovens pobres são estimulados a consumir e a empreender, mas muitos não têm a menor chance no mercado formal. Os mercados informais e ilegais emergem como um caminho alternativo. Mas logo essa guerra envia centenas de milhares desses jovens para cadeias e unidades de internação. Quem conhece esses lugares em São Paulo, sabe que ali os códigos da facção governam a vida cotidiana. Essa guerra entrega então nossos jovens às facções, para que elas selecionem os melhores para suas redes. Os restantes, agora ex-presidiários e sem alternativa alguma exceto a conversão religiosa, vão para ruas, cracolândias e comunidades terapêuticas.
Ao mesmo tempo, o governo eficientemente multiplica por cinco a população carcerária, entregando um exército enorme à facção que se fortalece e pacifica o mundo criminal.”
Esse quadro de coisas foi o resultado de uma política que uniu policiais punitivistas, gestores eficientes e defensores dos direitos humanos, conforme você concluiu no livro ‘Irmãos, uma história do PCC’?
Nesse momento do livro, eu tentava mostrar como as políticas de expansão e reforma do sistema carcerário paulista, após o massacre do Carandiru em 1992, foram instrumentalizadas pelo PCC. A facção surge no ano seguinte, em reação aos massacres, e progressivamente se torna hegemônica nos presídios paulistas. Ao mesmo tempo, o governo eficientemente multiplica por cinco a população carcerária, entregando um exército enorme à facção, que se fortalece e pacifica o mundo criminal. Os defensores de direitos humanos, dentro e fora do governo, não perceberam que a facção já não estava mais nessa chave. A pacificação do universo criminal era a contraface de uma organização importante da facção nas cadeias de valor internacionais da droga, do furto e desmontagem de veículos, do contrabando, lavagem de dinheiro etc.
Para quem não conhece, como o PCC age nas comunidades, nas ‘quebradas’, como se manifesta a hegemonia da organização nessas áreas?
Um rapaz que furtava carros há 8 anos, contratado por uma rede de desmanches protegida por policiais corrompidos, me disse certa vez que não sabia nem quem era o irmão do PCC responsável pelo seu bairro. Mas ele sabia que se vacilasse, trouxesse polícia para a favela, ele apareceria. Sabia que se precisasse de uma arma para um assalto, poderia procurá-lo. Se tivesse um conflito com alguém, poderia chamar os irmãos para decidir quem está certo. Ele sabia também o quanto se paga usualmente por um carro furtado, e o quanto se pagaria a um policial para relaxar uma eventual prisão. É assim que o PCC funciona: regulando os códigos cotidianos do uso de armas, do funcionamento da justiça informal e dos mercados ilegais. Seu poder passa a coexistir, portanto, com as lógicas estatal e religiosa, outros regimes que também governam o cotidiano por ali. Se eu tenho um problema de saúde, procuro o posto e não o PCC.
Uma pesquisa recente da Universidade de Chicago, liderada por Andrés Uribe e por Benjamin Lessing, detectou que 79 milhões de pessoas em 18 países da América Latina vivem sob a governança do crime. No Brasil, seriam 48 milhões. Qual o impacto dessa situação para a nossa democracia?
Essa população não está “sob domínio do crime”. A literatura sobre governança criminal ressalta a coexistência com outros regimes de poder, como o estatal, mas também os graus em que essa governança se exerce. Há situações em que as facções resolvem até briga de marido e mulher, e há outras em que se ocupam apenas do mercado de drogas no atacado. Pode-se viver numa área de forte presença do PCC sem ter a mínima ideia de como a facção atua ali. Mas a verdade é que temos ainda muito poucos estudos sobre um fenômeno que cresce em escala gigantesca. O PCC faz 30 anos agora, e lemos sobre ele no Guarujá, no garimpo da Amazônia, no aeroporto de Guarulhos, no navio levando cocaína para Antuérpia, em parceria com máfias europeias, africanas, asiáticas...
Como a descriminalização da maconha - que já conta com 4 votos no STF – afetaria as relações entre aparelho policial e as áreas onde o PCC é hegemônico, ou seja, onde o consentimento e a coerção fazem com que o grande número se submeta ao pequeno número?
Nas áreas hoje criminalizadas, mudaria pouco. Temos de debater também a regulamentação dos mercados ilegais, das cadeias de valor, das formas de conversão da imensidão de dinheiro que eles operam em desenvolvimento social, humano, institucional. O debate recente é apenas a ponta de um iceberg que terá que ser desvelado se quisermos de fato enfrentar nosso problema de insegurança. O consumo de tabaco está caindo no mundo todo, e o tabaco é uma droga. Hoje se dirige muito menos depois de beber, o álcool é uma droga legal. É preciso estender esse debate para as drogas hoje ilegalizadas, regulamentando esses mercados que hoje alimentam apenas o crime.
A descriminalização do porte de drogas afetaria a economia do PCC e sua hegemonia?
Não creio. A maconha ilegal é apenas um dos mercados operados pela facção, e não é nem de perto tão relevante quanto o da cocaína exportada por empreendedores da facção. Além disso, é preciso saber que o dinheiro ganho com mercados ilegais hoje já transita pelo mercado imobiliário, por eventos, bares e restaurantes, hoteis, empresas de logística e segurança etc. etc. Os segmentos ilegal e legal da economia já se integraram inclusive nos fluxos financeiros. Por isso mais do que descriminalizar o porte, temos que pensar nas cadeias de valor.
A medida apenas protegeria os jovens consumidores de classe média sujeitos à ação discricionária de policiais, que vão desde o ‘vai embora moleque’, passando pela prisão e podendo chegar ao achaque?
De um lado, é preciso ter algum critério objetivo para não tratar como traficante a menina que fuma um baseado com a amiga. Nossa lei abria brecha para isso e a mudança em discussão é positiva. Mas ela tem efeitos muito reduzidos frente ao nosso problema.
É preciso ter algum critério objetivo para não tratar como traficante a menina que fuma um baseado com a amiga.”
Como reproduzir os efeitos da lei dos desmanches na questão da droga? Como regular os mercados ilegais?
A Lei dos Desmanches pensa a cadeia de valor das autopeças, cria mecanismos de rastreabilidade e possibilita critérios para os empreendedores do ramo se legalizarem. Ainda existem desmanches ilegais? Sim, mas muitíssimo menos do que antes e, sobretudo, há muito menos violência ligada a esse mercado. Além disso, associações de pequenos e médios pátios de desmontagem possibilitaram que eles sobrevivessem no mercado legal, sem serem absorvidos por grandes monopolistas. Atores estabelecidos da cadeia de valor, como seguradoras, leilões, policiais e autoridades de trânsito, têm papel relevante na regulação dos novos mercados legais. Todos esses são elementos que poderiam ser apropriados para pensar a regulamentação dos mercados de drogas hoje ilícitas, convertendo-os em desenvolvimento e inibindo os problemas colaterais que as drogas, claro, também produzem. Há muitas experiências bem sucedidas no mundo, outras nem tanto. É preciso que aprendamos com elas também.
Estudo recente do IPEA (2023) mostra que a mediana nacional da quantidade de maconha apreendida em casos que resultaram condenações por tráfico nos Tribunais de Justiça do País é de 85 gramas. Treze Estados têm mediana inferior a essa. Seria possível dizer que o fim da arbitrariedade na definição sobre quem é traficante terá impacto não só na aplicação da lei, mas também na própria desordem causada atualmente pela lei pela sua falta de critérios?
Eu sou cético quanto à diminuição da criminalização dos pequenos operadores, e mesmo consumidores, por essa medida. Sabemos das arbitrariedades que transformaram nossas políticas de segurança em políticas de controle social dos mais pobres, da revolta social. Se não transformarmos o modelo, essas medidas acabam sendo contornadas para produzir o mesmo efeito final.
O que Lula deveria fazer com as polícias para evitar que elas sejam capturadas por grupos políticos que trabalham de acordo com interesses corporativos e com o marketing da violência do que com o efetivo combate à criminalidade?
Acho que o papel central do presidente seria o de apontar para um modelo alternativo de políticas de segurança, baseado em evidências, focado nos quatro eixos centrais de uma política democrática de segurança. O governo federal poderia induzir políticas de esclarecimento de homicídios, pautar uma nova forma de pensar punição e responsabilização, enfatizar um olhar para as cadeias de valor dos mercados ilegais e trabalhar pela redução da letalidade policial. Já seria um grande passo para sairmos da miséria intelectual em que estamos, quando se fala em Segurança Pública. Ainda se pensa que Segurança é reprimir, caçar bandido. Seria preciso lograr consenso sobre prioridades e caminhos outros, inclusive nos meios policiais. Há muitos policiais engajados em melhorar as coisas, e outros que lucram muito com tudo como está.
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