BRASÍLIA - O relatório da Polícia Federal, com 884 páginas, sobre a suposta trama golpista que tinha por objetivo manter Jair Bolsonaro (PL) no poder e barrar a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reuniu uma série de conversas recuperadas, documentos manuscritos e depoimentos que levaram ao indiciamento de, até agora, 37 pessoas.
Para a PF, o documento reúne as provas que devem servir para o Ministério Público Federal pedir a abertura de processo criminal contra os investigados. O Estadão listou dez provas elencadas pela PF para pedir o indiciamento do ex-presidente e de mais 36 pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa.
A defesa de Bolsonaro, a cargo do advogado Paulo Amador da Cunha Bueno, informou que primeiro ‘vai proceder a leitura do relatório’ para depois se manifestar. O ex-presidente não se pronunciou após a divulgação do relatório. Nesta segunda-feira, 25, porém, quando retornou a Brasília para se reunir com seus advogados, Bolsonaro afirmou que estudou “todas as medidas possíveis dentro das quatro linhas” para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas que, da parte dele, diz, “nunca houve discussão de golpe”.
O ponto a ponto
Minuta do golpe
A investigação demonstrou que, em 7 de dezembro de 2022, Jair Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Militares e o ministro da Defesa no Palácio da Alvorada para apresentar a minuta de decreto presidencial, com motivação golpista, e pressioná-los a aderir ao plano de golpe de Estado.
Uma versão da minuta foi apreendida em 10 de janeiro de 2023 na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. O texto determinava a decretação de Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A elaboração do documento foi capitaneada por Filipe Martins, então assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro. Martins esteve na reunião em que o então presidente apresentou o texto aos comandantes das Forças Armadas. A PF afirma que Bolsonaro tinha conhecimento sobre a preparação da minuta e fez ajustes ao texto.
Gabinete de crise
A Polícia Federal encontrou uma minuta de criação de um “gabinete de crise” que seria instituído em 16 de dezembro de 2022, após o golpe de Estado. O grupo seria composto majoritariamente por militares, sob o comando dos generais Augusto Heleno e Braga Netto, e seria ativado em reunião no Palácio do Planalto. O documento cita o objetivo de organizar uma nova eleição. O documento foi localizado em arquivos do general Mário Fernandes, que também seria membro do gabinete de crise.
Plano para capturar Moraes
A partir de mensagens de celular recuperadas em aparelho apreendido, a PF descobriu conversas que tratavam da execução de um plano para capturar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Militares das Forças Especiais do Exército, os chamados “kids pretos”, chegaram a se posicionar em pontos estratégicos de Brasília para a ação.
Ela foi abortada de última hora. A PF acredita que isso aconteceu porque, mais uma vez, o então comandante do Exército, Freire Gomes, se recusou a aderir à investida golpista.
O plano foi batizado de Punhal Verde Amarelo e as linhas gerais dele chegaram a ser impressas pelo general Mário Fernandes, ex-número 2 da Secretaria-Geral da Presidência, em uma impressora do Palácio do Planalto. Bolsonaro estava no prédio, segundo a PF.
Registros de portarias
A investigação recuperou registros de entradas e saídas em portarias dos prédios oficiais. A análise apontou que o general Mário Fernandes entrou no Palácio da Alvorada, às 17h58 de 9 de novembro de 2022. Exatos 41 minutos antes, ele havia usado uma impressora do Palácio do Planalto para imprimir o roteiro do “Punhal Verde Amarelo”. À época, o general era secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência.
Pressão de Bolsonaro sobre ministros para desinformação
Uma das provas da PF para apontar a participação direta de Jair Bolsonaro na trama golpista é a reunião ministerial de julho de 2022. Ele usou o encontro para coagir ministros de Estado a aderirem à narrativa de fraude eleitoral.
Para a PF, ficou evidenciado que “o objetivo da reunião era coagir os ministros presentes, para que aderissem à narrativa apresentada, promovendo e difundindo, em cada uma de suas respectivas áreas, desinformações quanto à lisura do sistema de votação, utilizando a estrutura do Estado brasileiro para fins ilícitos e desgarrados do interesse público”.
Documentos na pasta do assessor Braga Netto
Na mesa usada na sede do PL pelo coronel Flávio Peregrino, assessor e homem da estrita confiança do general Braga Netto, a PF encontrou uma pasta com documentos de interesse da investigação.
Um deles era um manuscrito com o título “operação 142″, em alusão ao artigo da Constituição que passou a ser usado com interpretação distorcida por bolsonaristas para estimular a ruptura institucional.
O documento tinha anotações de “interrupção do processo de transição”, “anulação das eleições”, “substituição de todo TSE”, “preparação de novas eleições” e “Lula não sobe a rampa”.
“O 01 sabe? sabe”
Em mensagem ao tenente-coronel Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros, em 26 de novembro de 2022, Mauro Cid, então ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, disse que o presidente estava ciente de uma carta com teor golpista assinada por oficiais do Exército. “O 01 sabe?”, perguntou Medeiros. “Sabe”, respondeu Mauro Cid.
O texto fazia considerações sobre supostos compromissos de militares com a legalidade, além de críticas à atuação do Poder Judiciário nas eleições. A carta concluía que os oficiais estavam “atentos a tudo que está acontecendo e que vem provocando insegurança jurídica e instabilidade política e social no País”.
Para a PF, está claro que Jair Bolsonaro tinha “conhecimento e anuência” sobre a confecção de uma carta com teor golpista elaborada por oficiais do Exército. O documento seria uma “estratégia para incitar os militares e pressionar o Comando do Exército” a aderir à ruptura institucional.
Reunião na casa de Braga Netto
Em 12 de novembro de 2022, militares das Forças Especiais do Exército, os chamados “kids pretos”, tiveram reunião na casa do general Braga Netto para apresentar um plano de ações clandestinas. Segundo a PF, foi nessa reunião em que foi aprovada a operação ‘copa 2022′, que pretendia prender e eliminar o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e ampliar o plano de golpe com o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e de seu vice, Geraldo Alckmin.
Relatos dos ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica
Em depoimentos prestados à PF, o ex-comandante do Exército general Freire Gomes e o ex-comandante da Aeronáutica tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Júnior afirmaram que foram pressionados a aderir ao plano golpista, mas se recusaram. A investigação aponta que a recusa de ambos foi decisiva para que o golpe não ocorresse.
Freire Gomes disse aos federais que “qualquer atitude, conforme as propostas, poderia resultar na responsabilização penal do então presidente da República”.
Segundo a PF, a recusa de Freire Gomes e Baptista Júnior em aderir ao golpe “não gerou confiança suficiente para o grupo criminosos avançar na consumação do ato final e, por isso, Bolsonaro, apesar de estar com o decreto pronto, não o assinou”.
Plano de fuga para Bolsonaro se golpe desse errado
O entorno de Jair Bolsonaro elaborou um plano de fuga do então presidente para caso o plano de golpe de Estado fracassasse.
O roteiro foi discutido após as manifestações de 7 de setembro de 2021 e continha estratégias militares para garantir a retirada do presidente para um local seguro fora do País.
Segundo a PF, o plano foi estruturado a partir de conceitos militares como Rede de Auxílio à Fuga e Evasão (RAFE) e Linha de Auxílio à Fuga e Evasão (LAFE), utilizados em operações de guerra para resgatar alvos em áreas conflagradas.
No caso de Bolsonaro, essas táticas foram adaptadas para criar rotas seguras e redes de apoio capazes de viabilizar sua retirada do Brasil caso as tentativas de golpe não obtivessem sucesso. Os registros foram encontrados em um computador apreendido com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro.
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