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A análise atenta dos principais depoimentos e documentos obtidos pela CPI da Covid na visão do especialista em saúde pública Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP

CPI da Covid termina com rastro de incertezas

Em 1992, a internet era inaugurada e outra pandemia, a do HIV e aids, assolava o Brasil e o mundo.

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Por Mário Scheffer

No dia 26 de agosto daquele ano, enquanto o senador Amir Lando (PMDB-RO) lia o relatório final da CPI que sugeriu o indiciamento do presidente Fernando Collor por corrupção passiva, formação de quadrilha e outros crimes, mais de 60 mil pessoas acompanhavam, em frente ao Congresso Nacional, a votação que aprovou o documento.

A CPI da Covid acaba nesta terça-feira, 26. Foto: Gabriela Biló/Estadão

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As fortes revelações da "CPI do PC Farias", mais centenas de milhares de pessoas que foram às ruas em todo o País, selaram o impeachment de Collor.

O contexto, a textura que entrelaça eventos e circunstâncias, tem influência na emergência e desenvolvimento de mobilizações, como as que precederam a deposição de Dilma Rousseff em 2016.

Nesta terça-feira, 26, encerra-se a CPI mais badalada da história do Legislativo, em que Bolsonaro é apontado como o presidente brasileiro mais delinquente de todos os tempos.

Não havia ninguém na Esplanada em Brasília e a audiência da TV Senado no YouTube era bem menor do que a verificada em outras sessões públicas da CPI da Covid.

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A receita de todo poder político é saber designar o objeto a ser odiado. As denúncias de irregularidades contra governantes têm sido, no Brasil, de tempos em tempos, a maneira de unir parcelas da sociedade em torno de alguma identidade ou compartilhamento de símbolos.

As conclusões da CPI, a razoável contenção da pandemia pelas vacinas e a recessão que apavora são o combustível aditivado disponível para mover a ocupação de ruas. Contudo, não vieram a unidade pelo "fora, Bolsonaro" nem a adesão popular que poderiam pressionar a aceitação de um pedido de impeachment.

Sem serventia, por ora, para sacudir estruturas, o relatório final da CPI foi exercício para a obtenção de um máximo denominador comum. Esticou-se a lista dos possíveis culpados e manteve-se a dos crimes.

O que foi aprovado é consenso aparente, nem sempre indexado à qualidade das decisões, e que não nos faz esquecer da ambivalência da comissão, de suas partes de luz e sombra.

Para a bancada governista foi injusta a ausência de governadores, prefeitos e outras autoridades subnacionais na listagem dos responsáveis pela tragédia.

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Como dois senadores do denominado G7 são ex-governadores do Amazonas, que fizeram incluir no relatório o inimigo político e mandatário atual, criou-se até uma intercessão entre as duas bancadas.

As controvérsias foram contornadas com a elasticidade do relatório. O ministro Paulo Guedes não entrou, mas 13 novos nomes surgiram no rol de pretensões de indiciamentos.

O consenso aparente foi maximizado até na ordem de leitura de Renan Calheiros, com os nomes na frente das infrações.

O relatório aprovado tem potencial de persuadir e provocar adesões. Mas revelou-se também um conjunto de erupções de assuntos de importância desigual.

Com a maioria dos membros da CPI pré-candidata a alguma coisa, o relatório é um ato forçoso de fim. A eventual reação dos destinatários, da PGR ao Tribunal de Haia, será degrau de intensidade suplementar.

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O que se deu em uma semana, entre a leitura e a votação do relatório da CPI, ajuda a entender porque Aras e Lira não serão os únicos obstáculos para que o Brasil possa dar início à responsabilização e à reparação pelas 606 mil mortes.

Os responsáveis pela desordem mandaram avisar que nada poderá detê-los.

Na Conitec, o governo impediu recomendação contrária ao uso de medicamentos inúteis para o tratamento ambulatorial de pacientes com covid-19.

Em sua live semanal, Bolsonaro replicou que pessoas vacinadas desenvolvem aids mais rapidamente. Já a Prevent Senior, por enquanto, assinou "ajustamento de conduta" e perdeu menos clientes do que os 70 mil que ganhou durante a pandemia.

Foram apresentadas a regulamentação do genocídio e a criminalização de fake news que sabotam a saúde pública, entre outras propostas legislativas. Mas o descuido do relatório, sobre o fato de o SUS continuar despreparado para a próxima emergência sanitária não encontra tradução nos códigos de condenação utilizados pela CPI.

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A CPI acabou e estamos mais no pessimismo pós-traumático do que no otimismo de um pós-guerra. O clima de esperança que tomou conta de muitos países, que passaram imediatamente a fazer evoluir o sistema de saúde, a rever seus modelos econômico e social, parece distante por aqui.

Onde vamos parar? A resposta é um mistério, pois não é possível enterrar um cadáver social ou fechar em relatório o choque prolongado e as perdas cumulativas que diferenciam a covid no País.

Diante de incertezas vertiginosas, fica a constatação de que o valor da vida ainda não se converteu na categoria principal do julgamento político.

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