As enchentes de proporções inéditas no Rio Grande do Sul mal haviam chegado às manchetes no resto do País e os abutres ideológicos já estavam a postos para explorar a tragédia politicamente. Influenciadores ganharam as redes sociais para dizer que os gaúchos estão pagando o preço de terem votado em “governadores neoliberais” que defendem o enxugamento da máquina do Estado. Políticos de esquerda atribuíram a calamidade das chuvas a uma suposta associação entre negacionismo climático e o fato de Jair Bolsonaro ter recebido mais de 56% dos votos para presidente no Rio Grande do Sul, em 2022.
Ambientalistas pegaram carona nessa falácia e acusaram prefeitos negacionistas de descumprir leis ambientais. Jornalistas, em comentários improvisados e sem consulta aos fatos, acusaram o atual governador, Eduardo Leite (PSDB), e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), de conscientemente ignorarem os riscos climáticos. O governo do estado e a prefeitura não teriam feito o suficiente para mitigar calamidades depois das inundações de setembro de 2023, que deixaram um saldo de 53 mortos. O governo federal, a bem da verdade, tampouco fez tudo o que prometeu: ainda precisa repassar um terço dos 500 milhões de reais garantidos para o Estado depois das chuvas da primavera passada. A justificativa para o atraso é que os municípios devem comprovar os estragos para receber o dinheiro.
No caso de Porto Alegre, cujo centro histórico está debaixo d’água, faltou manutenção no sistema de contenção de enchentes, uma responsabilidade que o governo estadual diz ser da prefeitura. Mas o fato é que qualquer investimento que tivesse sido feito nos últimos meses poderia ter mitigado apenas parcialmente os efeitos das chuvas intensas que o Estado tem enfrentado. O sistema antienchente da capital tinha como parâmetro a inundação histórica de 1941 — um parâmetro que foi quebrado nos últimos dias. No interior do Estado, produtores de leite estão jogando fora dezenas de milhares de litros de leite diariamente porque não têm como transportar o alimento para as indústrias de laticínios: pontes e rodovias que dão acesso às propriedades foram destruídas pela enxurrada. O que poderia ter sido feito para evitar esse tipo de situação?
Pode haver um componente de má gestão nos investimentos insuficientes em prevenção de enchentes e de danos humanos e materiais em áreas de risco, mas é um equívoco atribuir isso ao “negacionismo climático” dos governantes. Não existe relação de causa e efeito entre o partido do governador de ocasião e calamidades provocadas por eventos climáticos extremos. Ou as inundações no Nordeste, em 2022, são de certa forma culpa do PT e do PSB, que governavam alguns dos estados afetados?
Além disso, é injusto acusar os gaúchos em geral de negacionismo só porque pouco mais da metade dos eleitores do estado votaram em Bolsonaro. Como mostrou um estudo publicado por pesquisadores da FGV na revista científica Nature, em novembro do passado, a correlação entre preferência política e ceticismo diante do aquecimento global é amplamente superestimada. Os pesquisadores identificaram que cerca de 91% dos brasileiros acreditam que mudanças no clima estão acontecendo como consequência da ação humana. Uma proporção menor, de 56%, avalia que os efeitos dessas mudanças são negativos. E mais: o estudo descobriu que a crença nas mudanças climáticas está mais associada a fatores psicológicos do que a ideologias políticas. A correlação existe, mas não é tão relevante estatisticamente quanto se poderia imaginar.
Atribuir aos gaúchos uma espécie de culpa político-ideológica pela tragédia climática que enfrentam é cientificamente incorreto e moralmente indefensável.
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