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Opinião | Boicotes a empresas são ato político, mas efeito econômico costuma ser pífio

O boicote do Carrefour e a reação das empresas brasileiras revelam uma relação B2B paradoxalmente pautada pela fidelidade de grandes empresas multinacionais aos interesses nacionais de seus países de origem

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Foto do author Diogo Schelp

Em uma fala demagógica calibrada para fazer demonstração de virtude junto ao consumidor francês, Alexandre Bompard, presidente do grupo Carrefour, afirmou que não venderia mais carne importada do Mercosul, o que inclui o Brasil, em suas lojas na França. A desculpa é ambiental, mas a verdadeira motivação é a pressão de sindicatos de agricultores franceses contra a possibilidade de a União Europeia fechar uma acordo de livre comércio com o bloco sul-americano. Do ponto de vista do impacto comercial para sua rede varejista, Bompard não tomou nenhuma medida drástica. Já existem cotas reduzidas na Europa para proteína animal vendida pelos países do Mercosul.

Trata-se de um ato político, um ativismo de marca que se consolida em um boicote B2B (abreviação para business-to-business, “de empresa para empresa”, em inglês). Ativismo de marca ocorre quando uma empresa adota um discurso público em defesa de uma causa ideológica como estratégia comercial. Muitas vezes, a preocupação com a causa escolhida – no caso, a questão ambiental – está longe de ser sincera, apenas escamoteia outros interesses. Com frequência, a ação escolhida para demonstrar o apego à causa do ativismo de marca tem baixo custo e altíssima visibilidade. É o caso do boicote do Carrefour à carne do Brasil e de outros países do Mercosul.

Carrefour: CEO do grupo, Alexandre Bompard afirmou que não venderia mais carne importada do Mercosul Foto: Pascal Guyot/AFP

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Já o boicote B2B é a versão corporativa dos vetos que consumidores adotam para pressionar marcas a abandonar ou incorporar certas práticas, ou para punir empresas de determinados países por motivos geopolíticos (quando se deixa de comprar produtos russos em protesto contra a Guerra na Ucrânia ou de empresas israelenses por causa do conflito na Faixa de Gaza). É bastante comum que o boicote B2B, ou seja, quando uma empresa inicia retaliação a fornecedores ou clientes corporativos, seja adotado como uma forma de se antecipar e se precaver contra um boicote de consumidores.

Em 2019, por exemplo, a VF Corporation, grupo que detém marcas populares entre brasileiros como Vans e The North Face, anunciou um boicote ao couro produzido no Brasil por considerar que a pecuária nacional estava associada ao desmatamento na Amazônia. A determinação continuava válida em documento de abril de 2023 contendo a política da empresa para produtos de origem animal. Detalhe: a proibição de usar couro de gado criado no Brasil só vale para produtos vendidos no resto do mundo. Os itens comercializados no mercado brasileiro podem continuar sendo feitos com couro local. Curioso e conveniente.

Boicotes, tanto os de consumidores quanto os B2B, costumam ter dupla moral. Pune-se uma marca ou fornecedor, geralmente aquele que traz mais visibilidade, mas não outros. A Índia, por exemplo, sexto maior produtor de couro do mundo e um país que não é exatamente um modelo de proteção ambiental, não está na lista de boicotes da fabricante da Vans. Em 2018, o site de hospedagens Airbnb foi confrontado com dilema parecido, ao decidir suspender suas atividades na Cisjordânia, em Israel, sob o argumento de se tratar de um território em disputa. A empresa foi prontamente criticada por não ter adotado o mesmo critério para outras regiões do mundo sob ocupação militar.

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Mais relevante ainda é a constatação de que o efeito prático de boicotes de consumidores ou de empresas costuma ser pífio. O veto da VF Corporation ao couro brasileiro, por exemplo, não comprovou ter salvo uma única árvore amazônica de ser derrubada. Há diversos estudos acadêmicos comprovando que o impacto econômico de boicotes costuma ser baixíssimo. Um artigo publicado em 1997 por pesquisadores da Flórida, nos Estados Unidos, por exemplo, demonstrou que o valor de ações de empresas aumentaram em média 0,76% no dia em que boicotes de consumidores contra elas foram anunciados – quando o esperado, pelo senso comum, seria que caíssem. Análises de casos específicos de boicotes nos Estados Unidos, em 2020, também revelaram que o impacto nas vendas das empresas boicotadas não durou mais do que três semanas, em média. Outro estudo, da Universidade de Kiel, na Alemanha, publicado em 2021, analisou o fato de a adesão de consumidores a boicotes durar pouco (no máximo oito meses, segundo um dos casos citados) e muitas vezes perder fôlego a ponto de não exigir qualquer mudança de comportamento por parte do alvo do boicote.

Não vai ser diferente com a proibição do Carrefour à carne do Mercosul e com a consequente retaliação à empresa dentro do Brasil. O mercado francês é irrisório. Representa apenas 0,002% da carne in natura exportada pelo Brasil. O problema é o dano de imagem que isso causa para a produção brasileira. Daí a revolta com que associações setoriais, frigoríficos, parlamentares e membros dos governos federal e estaduais reagiram ao veto da empresa francesa. Do ponto de vista moral, pela lógica da reciprocidade, pode parecer justificada a decisão de frigoríficos e outros setores empresariais aderirem a um “boicote do boicote”, recusando-se a fornecer carne para o Carrefour no Brasil ou a comprar da rede para abastecer hotéis e restaurantes. Trata-se, porém, mais de uma mensagem política do que de algo capaz de alcançar resultados concretos.

O impacto financeiro para o grupo tende a ser restrito a um período curto de tempo e talvez não seja suficiente para pressionar pelo resultado esperado por associações e políticos, ou seja, uma retratação do CEO do Carrefour na França. O boicote da rede varejista francesa ao Mercosul e a reação das empresas brasileiras revelam uma relação B2B que, paradoxalmente, se vê pautada pela necessidade de grandes empresas multinacionais de se mostrarem fieis aos interesses nacionais de seus países de origem. Serve para consumo político interno, e só.

Opinião por Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

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