Em abril de 2005, Celso Amorim, o então ministro das Relações Exteriores e atual assessor internacional da Presidência, anotou em seu diário que um artigo na imprensa internacional citava Lula como “o único interlocutor possível para mediar entre Chávez e Bush”, referindo-se respectivamente aos presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e George W. Bush, dos Estados Unidos. O trecho está no livro “Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul”, publicado por Amorim em 2022 e no qual transparece a percepção do diplomata de que a proximidade do Brasil dos dois primeiros mandatos de Lula com a Venezuela chavista era um trunfo na relação bilateral com os Estados Unidos. A “imprevisibilidade do líder venezuelano” e o “intervencionismo norte-americano”, nas palavras de Amorim, tornavam a conciliação entre os dois países praticamente inviável. Ele suspeitava, inclusive, que nem Lula tinha “o poder de domar o novo ‘caudilho’”, mas ainda assim a diplomacia brasileira se esforçava para fazer crer que isso era possível. Era bom que os americanos acreditassem que precisavam do Brasil para controlar os “países-problema” da América Latina.
Vinte anos depois, Lula se vê em uma condição muito diferente quanto à sua capacidade de equilibrar os interesses do Brasil com os da Venezuela e dos Estados Unidos. A relação que se vislumbra com o próximo presidente americano, Donald Trump, que toma posse no dia 20, é potencialmente conflituosa. Trump já ameaçou retaliar o Brasil por “cobrar muito” dos Estados Unidos em tarifas de importação. E montou um gabinete dominado por pessoas influenciadas por adversários políticos de Lula e que enxergam a América Latina sob a ótica das divisões ideológicas (como o futuro chefe da diplomacia americana, Marco Rubio) ou que já tiveram problemas com a Justiça brasileira (como o bilionário Elon Musk, que comandará os esforços de desburocratização do novo governo).
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Para neutralizar esses riscos, seria muito útil à diplomacia brasileira se apresentar como um jogador necessário para os Estados Unidos no tabuleiro da América Latina, especialmente na triangulação com a Venezuela, mas essa possibilidade é remota. Afinal, Lula 3 ficou despido de qualquer influência junto à Venezuela, governada desde a morte de Chávez, em 2013, por Nicolás Maduro. Recentemente, o ditador venezuelano montou nas costas de Lula para arquitetar uma eleição fake em que se atribuiu mais seis anos no poder. A fraude foi tão descarada que não restou outra alternativa ao Brasil que não fosse a de se recusar a reconhecer o resultado do pleito.
Ao mesmo tempo, a diplomacia lulista continua acreditando que o isolamento da Venezuela não é “um bom remédio”, como já registrava Amorim em seus diários em 2007. O atual chanceler Mauro Vieira disse em audiência na Câmara dos Deputados, em novembro, “que diálogo e negociação, e não isolamento, são as chaves para a construção de qualquer solução pacífica e duradoura na Venezuela”. Ele prevê uma “inevitável redução do dinamismo do relacionamento bilateral”, mas não um rompimento, o que explica a decisão de enviar a embaixadora do Brasil em Caracas para a posse de Maduro no dia 10 deste mês.
Essa relação apenas em nível funcional, evidentemente, não basta para fazer do Brasil o “interlocutor possível” entre Estados Unidos e Venezuela. Além disso, os países que atualmente possuem influência de fato sobre o governo chavista são a Rússia e a China — e para esses, quanto mais Maduro for uma pedra no sapato de Trump, melhor. O que pode funcionar para o Brasil é exercer a função de fiel da balança no Brics, o grupo de países emergentes do qual é membro-fundador e que é um contraponto ao G7, o clube dos sete países mais ricos do mundo, liderado pelos Estados Unidos.
Em outubro do ano passado, o Brasil barrou a entrada da Venezuela no Brics — uma resposta adequada à vergonha que Maduro fez Lula passar ao usar o aval brasileiro para sua farsa eleitoral. Trump está de olho no Brics, que vem sendo usado pela China para ampliar sua influência global e pela Rússia para driblar sanções e evitar o isolamento internacional. Já avisou que não aceitará sem reação iniciativas do grupo que se desfaçam do dólar como moeda dominante do comércio mundial. Se souber atuar com moderação para equilibrar decisões tomadas no âmbito do Brics, sobretudo evitando ceder inteiramente aos interesses chineses e russos, o Brasil pode manter alguma relevância global e colocar algumas cartas na manga para usar com os americanos.
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