A polícia no Brasil tem uma licença velada para matar, concedida não apenas pelas autoridades, pelo corporativismo e pela leniência judicial, mas também pela própria sociedade. Poucas vezes isso ficou tão evidente e institucionalizado quanto no julgamento do policial militar Rodrigo Soares, autor do tiro de fuzil que matou Ághata Felix, de 8 anos, em uma favela do Rio de Janeiro, em 2019. Ele teria confundido uma esquadria de alumínio em uma moto com uma arma de fogo e disparou, bem ao estilo de “atirar primeiro, perguntar depois”, já que testemunhas e a própria divisão de homicídios do Rio dizem que os PMs não haviam sido atacados, conforme eles alegaram depois. A menina Ághata, que passava pelo local dentro de uma Kombi, foi atingida nas costas.
Na semana passada, os integrantes do júri popular absolveram Soares. O tribunal do júri, idealmente, representa a sociedade, com sua diversidade de valores morais e maneiras de pensar. Pelo padrão moral das pessoas sorteadas para dar o veredito em nome da sociedade no caso Ághata, um policial pode assumir o risco de matar inocentes desde que esteja combatendo criminosos — reais ou imaginários. Para os jurados, portanto, não se pode atribuir a ele a intenção de matar, mesmo quando age com displicência, o que equivale a dizer que ele não é responsável por seus atos. A conclusão lógica é que ele não é obrigado a cumprir regras de engajamento, os protocolos que determinam quando e como usar a força de forma proporcional e priorizando a vida dos cidadãos.
A impunidade recorrente e a disposição das autoridades em colocar panos quentes nessas situações, com a desculpa de “resguardar” a imagem da polícia, estão levando à banalização de mortes de inocentes nesses bangue-bangues em lugares altamente povoados e cheios de pessoas nas ruas, indo para escola ou para o trabalho. Na semana passada, foi a vez do pequeno Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, perder a vida em meio a um tiroteio entre bandidos e a PM na Baixada Santista, enquanto brincava na rua.
Atribuir uma tragédia dessas aos bandidos, apenas, não cola. Deles não se pode esperar qualquer preocupação com a vida de inocentes. É da polícia a responsabilidade de proteger a população. Não há, portanto, nada de acidental em mortes como as de Ághata ou Ryan. Elas são resultado de ações negligentes por parte de agentes do Estado que se acostumaram com a ideia de que têm licença para matar e que vítimas “colaterais” são coisas da vida — um mal indesejado, mas tolerável, na “guerra” contra a criminalidade.
Ainda que essa abordagem fosse eficaz, não seria tolerável. E nem eficaz é. Estão aí os índices de criminalidade para provar. Entre janeiro e agosto deste ano, a polícia de São Paulo matou 78% mais do que no mesmo período de 2023, enquanto alguns tipos de crimes aumentaram (latrocínios) e outros caíram (roubos). Não dá para chamar isso de sucesso em segurança pública.
Está aí, também, para demonstrar a ineficácia da estratégia de segurança pública, a audácia aterrorizante de um grupo criminoso, o PCC, ou de policiais corruptos, os principais suspeitos de ordenar a execução, em uma tarde movimentada no Aeroporto de Guarulhos, de um homem que entregou seus esquemas em delação para a Justiça. Os disparos dos assassinos mataram também um motorista de aplicativo, Celso Araújo Sampaio de Novaes, de 41 anos, e feriram outras duas pessoas que nada tinham a ver com a história. Os bangue-bangues com mortes “acidentais” de operações policiais com alta letalidade dos últimos meses defendidas pelo secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite, claramente não enfraqueceram os criminosos nem impuseram cautela a eles, que agora fazem seus acertos de contas em plena luz do dia no maior aeroporto do país.
Nas comunidades pobres Brasil afora, na Linha Amarela do Rio de Janeiro e agora até no desembarque de voos nacionais de Guarulhos, o bangue-bangue normalizou-se e cobra o seu preço com o sangue de inocentes. Nas situações em que a polícia está presente, é sua obrigação colocar a proteção da população em primeiro lugar.
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