Quando falou diante de um público esvaziado de apoiadores no dia 16 de março, no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro ainda não havia se tornado réu por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes. Havia, na ocasião, o duplo objetivo de exibir a resiliência do capital político do ex-presidente e dar tração ao projeto de anistia aos condenados do 8 de janeiro, com uma brecha para beneficiar o próprio Bolsonaro, permitindo que ele pudesse recuperar o direito de disputar eleições.
A manifestação deste domingo, 6, na Avenida Paulista, em São Paulo, que reuniu uma multidão maior, também ganhou a maquiagem de um ato a favor de um perdão aos “inocentes” que depredaram Brasília e tentaram incitar os militares contra os poderes da República. O símbolo do ato foi o batom, item usado pela cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, ré por diversos crimes associados à sua participação no 8 de janeiro, para pichar “perdeu, mané” na estátua da Justiça, em Brasília. Mas a mensagem central dos discursos, principalmente os de Bolsonaro e de sua esposa, Michelle, foi outra.

Ainda que tenham, mais uma vez, explorado o apelo emocional da história de pessoas comuns condenadas pelo ato golpista, mas que estavam em Brasília apenas “visitando” ou “para ver o que estava acontecendo”, nas palavras do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, os discursos deste domingo serviram ao propósito de preparar o terreno para a reação à condenação de Bolsonaro.
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Os votos unânimes da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) na aceitação da denúncia contra ele e os outros sete acusados, assim como a celeridade com que o caso vem sendo tratado no tribunal, aumentaram a convicção entre o círculo íntimo do ex-presidente de que a condenação e a prisão são favas contadas. Essa percepção já vinha de antes, a ponto de Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara dos Deputados, ter dito que, “lamentavelmente”, Bolsonaro “já é um pré-condenado”.
A aprovação do projeto de anistia, que na última semana levou um drible na Câmara e não entrou em regime de urgência, não resolve o problema de Bolsonaro, pois o STF pode impedir sua aplicação. O bolsonarismo precisa manter o assunto em voga, contudo, por dois motivos. Primeiro, para justificar a narrativa de que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário que persegue a direita. Segundo, para reforçar o vínculo de lealdade entre Bolsonaro e seus seguidores, que se mostram dispostos a se sacrificar pelo líder e vice-versa.
São esses os dois pontos centrais da estratégia que Bolsonaro está preparando para o momento em que for condenado e preso. Ele precisa que seus apoiadores estejam convencidos de que sua liberdade, seus bens e até mesmo suas vidas estão em risco, e que se seu líder vai se sacrificar para salvá-los, devem estar preparados para fazer o mesmo por ele.
Bolsonaro quer que sua condenação e prisão despertem um grande clamor popular. O pastor Silas Malafaia, organizador dos atos pró-Bolsonaro, deu a dica: “Se os senhores [ministros do STF] prenderem Bolsonaro, o que pode acontecer no Brasil? Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo!”
Não é por acaso que o protesto do batom ganhou contornos religiosos tão acentuados. Bolsonaro, disse Michelle, é o “escolhido” por Deus para enfrentar a “maldade de alguns do STF”. O batom, afirmou a ex-primeira-dama, é o símbolo da luta contra a injustiça que “temos sofrido desde 2018″, numa óbvia referência aa facada sofrida por seu marido durante a campanha presidencial daquele ano.
Em sua fala, Bolsonaro retomou o fio do raciocínio iniciado por Michelle. Ele afirmou lutar por liberdade, algo mais importante até do que a vida, “pois sem liberdade não se vive”. Reforçou a ideia de injustiça cometida contra pessoas comuns em decisões do STF ao mencionar as condenações de um pipoqueiro e de um sorveteiro e ao chamar a mãe e a irmã da cabeleireira Debora para posar ao seu lado no carro de som, mas tudo isso apenas como preparação para a mensagem que realmente importa: ele, Bolsonaro, é a verdadeira vítima.
Após elencar uma série desconexa de supostas provas de que a eleição de 2022 foi roubada em favor de Lula (“o golpe foi dado, tanto é que o candidato deles está lá”), Bolsonaro fez uma confissão involuntária ao se apresentar como mártir: “Se eu estivesse no Brasil [em 8 de janeiro de 2023], estaria apodrecendo na cadeia ou teria sido assassinado pelos mesmos que colocaram esse vagabundo na presidência.”
Bolsonaro, como se sabe, fugiu do Brasil no apagar das luzes do seu mandato — alegadamente, para não ter de passar a faixa para Lula, mas suspeita-se que queria mesmo era estar longe do alcance da Justiça caso o levante popular que estava sendo gestado e estimulado nos bastidores não alcançasse o seu objetivo. Mais adiante, Bolsonaro sugeriu que a perseguição a ele é parte de uma conspiração internacional contra a direita, citando uma recente condenação contra a líder radical francesa Marine Le Pen, os processos contra o americano Donald Trump e a repressão à oposição venezuelana. Por fim, criou um novo bordão vitimista: “O que os canalhas querem é me matar!”
O ato deste domingo, apesar de toda a fanfarra em torno da ideia de aprovação de uma anistia para os injustiçados do 8 de janeiro, com direito a pressão sobre o presidente da Câmara Hugo Motta e de outros parlamentares (o prefeito Ricardo Nunes, deixando cair a máscara de moderado, pediu que os paulistanos procurem seus deputados para cobrar apoio ao projeto), representou, isso sim, o início da incitação a uma futura revolta bolsonarista contra a provável condenação e prisão do seu líder.