Como era previsto, a manifestação em Copacabana deste domingo, 16, convocada com o mote de defender a anistia para os condenados pela agitação golpista de 8 de janeiro de 2023, não passou de mais um ato pró-Bolsonaro. O curto discurso do governador Tarcísio de Freitas expôs a lógica que começa com a promessa de fazer justiça para “inocentes humildes” e termina com um chamado pela volta de Jair Bolsonaro ao poder. Minuto após minuto, Tarcísio afundou em contradições.
A fala do governador de São Paulo dividiu-se em quatro blocos argumentativos. No primeiro, tangenciou a narrativa, difundida pela ala mais radical do bolsonarismo, de que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário. Tarcísio definiu o ato no Rio de Janeiro como um ponto de inflexão na história do Brasil, mais especificamente na luta pela liberdade. E questionou: “Qual é a razão de afastar Jair Bolsonaro das urnas?” Ele mesmo respondeu, de forma direta: para impedi-lo de chegar ao poder. Com isso, Tarcísio aderiu à tese de que os julgamentos que tornaram Bolsonaro inelegível tinham motivação política.

Se é assim, o governador concorda com a tese de que a atuação da cúpula do Judiciário brasileiro é ilegítima. Mas não é isso que ele transparece no dia a dia como governador. Quando há interesses da sua gestão que esbarram em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, Tarcísio joga dentro das regras e reconhece a legitimidade dos julgadores — como ocorreu recentemente ao convidar o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, para uma apresentação sobre as câmeras corporais da polícia paulista.
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No segundo bloco de seu discurso de cerca de seis minutos, Tarcísio abordou o tema oficial da manifestação. Pediu anistia aos “inocentes” de 8 de janeiro. E comparou a punição imposta a eles pelo STF ao destino dos envolvidos nos escândalos revelados pela Operação Lava Jato. “Os caras que assaltaram o Brasil, que assaltaram a Petrobras, voltaram à cena do crime”, disse Tarcísio. “Parece haver Justiça nisso?” Ela dá a entender que a única maneira de igualar as coisas, de realmente fazer justiça, é concedendo anistia “para aqueles que nada fizeram”, referindo-se aos vândalos com intenções golpistas de 8 de janeiro.
Aqui, Tarcísio afunda-se ainda mais em contradições. Primeiro, porque como governador ele não tem demonstrado constrangimento algum em interagir e até mesmo trocar elogios com algumas dessas pessoas que “assaltaram o Brasil”, a começar pelo presidente Lula, com quem se encontrou recentemente em meio a mesuras mútuas e públicas. O Tarcísio pragmático do governo estadual, que diz ser necessário deixar diferenças políticas de lado pelo bem da população, não estava presente na manifestação pró-Bolsonaro.
Segundo, porque a impunidade da Lava Jato não justifica a impunidade de quem ansiava pela ruptura da ordem democrática. Terceiro, porque uma anistia pressupõe uma admissão de culpa. A origem da palavra, em latim, tem o significado de esquecimento. Não se pode esquecer ou perdoar algo que não aconteceu. Se os condenados de 8 de janeiro são inocentes, como diz Tarcísio e todos os que estavam naquele carro de som em Copacabana, então não há nada a ser anistiado. Se foram condenados injustamente e por motivação política, sem direito ao devido processo legal, a solução é passar uma borracha em tudo ou reformar o sistema judicial? Esquecimento e reforma são caminhos distintos.
Ao lado da suposta “inocência” dos condenados de 8 de janeiro, Tarcísio expôs no terceiro bloco de seu discurso as motivações adicionais para a anistia. Ela seria necessária, segundo ele, “para que a gente tenha pacificação” e “possa se dedicar aos temas nacionais”. O governador passa, então, a elencar uma série de problemas do País que supostamente não estariam sendo abordados e resolvidos por conta de uma ausência de “pacificação”. Envelhecimento da população, financiamento do SUS, inflação, gastos públicos. Tudo isso estaria sem solução, a julgar pelo que disse Tarcísio, porque o país está Paralisado por algum tipo de conflito social ou político.
A premissa é evidentemente falsa. Não há sinais de convulsão social ou política no país. Ninguém está deixando de discutir o SUS porque algumas pessoas foram condenadas por tentar incitar as Forças Armadas a dar um golpe dois anos atrás. Existe um governo federal razoavelmente impopular e uma oposição que tem explorado essa debilidade, mas estamos distante da necessidade de “pacificação” de que fala Tarcísio. A anistia, nos termos propostos pelo bolsonarismo, só interessa ao bolsonarismo. O próprio Tarcísio, como governador, tem se beneficiado de um contexto republicano menos combativo e atribulado do que aquele vivido durante o governo Bolsonaro.
No quarto bloco de seu discurso, Tarcísio retorna ao argumento de que a solução para os males do país reside no retorno de seu mentor político ao poder. “Se está tudo caro, volta Bolsonaro.” Segundo ele, no governo do padrinho “o Brasil era diferente” e é apenas com ele, “fruto de um milagre”, que será possível “libertar o Brasil da esquerda”. A contradição, nesse trecho, era a própria presença de Tarcísio no palanque. Ele é o nome mais forte para suceder Bolsonaro como candidato presidencial. O fato concreto é que Bolsonaro está duplamente inelegível e está prestes a se tornar réu por tentativa de golpe de Estado. O resto que foi discutido no ato em Copacabana, a começar pela ideia de anistia extensível a Bolsonaro, depende de inúmeras variáveis para se tornar realidade. Estando Bolsonaro inelegível, o único candidato potencial que pegou no microfone neste domingo foi Tarcísio. Quando ele pediu a volta de Bolsonaro, era como se estivesse pedindo voto em si mesmo.