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Opinião | Versão de que militares trairiam Bolsonaro após golpe é conversa pra boi dormir

Não é isso que está na planilha: tentativa de legitimar o plano golpista era baseada na ideia de fraude eleitoral apontada por Bolsonaro e não haveria como obter apoio popular para sustentar a ruptura sem ele

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Atualização:

Enquanto Jair Bolsonaro lança apelos públicos por anistia, com direito a um “por favor” dirigido diretamente ao ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito que investiga uma suposta tentativa de golpe de Estado em 2022, a defesa do ex-presidente dedica-se a construir uma nova versão dos fatos incriminadores levantados pela Polícia Federal. O advogado Paulo Cunha Bueno disse que uma junta militar a ser criada no dia 16 de dezembro, conforme plano encontrado nos arquivos do general Mario Fernandes, é que seria a beneficiada de um golpe, não Bolsonaro. Os integrantes desse grupo assumiriam o governo no lugar dele, segundo Bueno.

Após ser indiciado por tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) desembarcou em Brasília na última semana Foto: Wilton Junior/Estadão

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Bolsonaro já vem dizendo, desde o seu indiciamento junto com outras 36 pessoas no âmbito desse inquérito, que estudou alternativas para não ter de entregar o poder a Lula, mas tudo “dentro das quatro linhas” da Constituição e que, de resto, não tinha conhecimento de uma conspiração golpista. A soma das falas de Bolsonaro com as de seu advogado procura levar à conclusão de que o teor de qualquer conversa dele com os outros indiciados estava dentro da lei e de que, se houve uma tentativa de golpe, ocorreu à sua revelia e ele não ganharia nada com isso.

A versão de que os militares tramaram uma ruptura institucional pelas costas de Bolsonaro e que pretendiam traí-lo em seguida, em um verdadeiro golpe dentro do golpe, não é crível por três motivos. Primeiro, porque não é isso que está escrito na planilha do general Fernandes, segundo a PF. O documento detalha a estrutura e as funções de um gabinete de crise a ser instalado no dia seguinte ao golpe. Entre as suas atribuições estava assessorar Bolsonaro, não substituí-lo, como comprova esse trecho: “Proporcionar ao Presidente da República maior consciência situacional das ações em curso a fim de apoiar o processo e tomada de decisão.” O tal gabinete de crise — que vem sendo chamado de “junta militar” porque seria chefiado pelos generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto — teria também a tarefa de cooptar o apoio do Congresso, coordenar as ações de agências de inteligência e das Forças Armadas, aplicar medidas jurídicas e estabelecer um discurso único para dentro e para fora do país.

Segundo, porque a tentativa de legitimação do plano golpista (o “discurso único”) se sustentava na ideia de que as eleições vencidas por Lula tinham sido fraudadas, uma narrativa que vinha sendo construída e incentivada por Bolsonaro desde o início do seu governo. Na visão dos golpistas, e isso fica claro nos documentos citados pela PF, o poder a ser combatido, deposto, era o do TSE e do STF, não o de Bolsonaro. Esse seria mantido no cargo até a realização de novas eleições.

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Terceiro, porque Bolsonaro é um líder personalista e carismático, figura indissociável do movimento que bloqueou estradas e se instalou nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar após sua derrota nas urnas. Naquele momento, com o “mito” instalado no Palácio do Planalto, seria inviável contar com o apoio popular do bolsonarismo sem Bolsonaro. Uma situação muito diferente de 1964, quando o deputado Ranieri Mazzilli assumiu interinamente a presidência após o golpe, mas quem passou a mandar de fato era uma junta militar. Em 2022, o tal gabinete de crise teria muita dificuldade de construir um discurso de legitimidade se, além de atropelar o resultado da eleição, afastasse Bolsonaro do poder. Golpe dentro do golpe? Conversa pra boi dormir.

Opinião por Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

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