Uma nova correlação de forças deve surgir na política a partir das eleições municipais, na avaliação do cientista social Marcos Nobre. Isso não significa que Jair Bolsonaro tenha perdido capital eleitoral nem que um antagonista ao presidente tenha aparecido, mas o desenho partidário nas prefeituras deve permitir que direita e esquerda dialoguem sobre eventual frente democrática.
Professor de Filosofia Política na Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Nobre disse ver o cenário político após estas eleições municipais dividido em três blocos: o do Centrão bolsonarista, o da direita tradicional e o da esquerda. Sem um líder evidente em cada um desses universos, a única saída será a formação de alianças, afirmou o professor.
Que fenômeno mais chamou a atenção nestas eleições? O mais importante resultado foi a reorganização do campo político em três campos. Desde o momento em que Bolsonaro se aproximou de parte do Centrão, ele criou uma disputa interna e organizou o Centrão em duas alas. Há essa ala liderada pelo PP. É um bloco muito claro: PP, PL e Republicanos. E a outra parte é o que podemos chamar de direita tradicional, liderada pelo Rodrigo Maia (DEM, que procurou fazer uma coordenação entre DEM, PSDB e MDB. Ao se comprometer com o governo, essa parte do Centrão também saiu em vantagem para ser referência nesse processo de aglutinação no futuro, ameaçando partidos como PSDB e MDB, diretamente. Eles têm então de responder a essa ameaça se descolando do bloco governista.
Como o cenário pré-2013, com PT, PSDB e Centrão, dialoga com o que estamos vendo hoje? Quando as pessoas dizem ‘a velha política voltou’, isso é um absurdo completo. As pessoas esquecem que a política eram dois polos, PT e PSDB, e um ‘mar de PMDBs’ no meio. Agora há essa divisão em três, e não existe líder claro. A hegemonia em cada um desses três campos vai ter de ser muito negociada, e o resultado vai ser muito diferente. As pessoas continuavam raciocinando com hegemonia do PSDB, hegemonia do PT, e isso não existe mais. Ninguém mais pode dizer ‘eu mando neste campo’.
Podemos considerar essa fatia do Centrão hoje como parte orgânica do bolsonarismo? Não é apenas uma aliança de ocasião? Vai depender do resultado de 2022, ou do fato de Bolsonaro conseguir ou não terminar o mandato. Eu não vejo muita razão para esses partidos não toparem a implantação do autoritarismo, porque vão estar no poder. Não acredito que todas as forças que estão no Parlamento sejam inerentemente democráticas, sabe? Sempre, todo mundo tende a dizer que existe o Bolsonaro, com seu projeto autoritário, e existe quem o apoie de maneira oportunista. Essa é a história da implantação do autoritarismo no mundo. É dizer ‘esse cara é autoritário, mas quem apoia e vota não é e não vai com ele nisso’. Todas as vezes que disseram isso, deu o contrário.
As eleições municipais foram um bom termômetro para medir a popularidade de Bolsonaro? Sim e não. Por um lado, as eleições municipais só trazem dados da rejeição dele para grandes capitais. Não temos um dado realmente utilizável em âmbito nacional, mas o fato de a rejeição a Bolsonaro ter chegado a 50% na cidade de São Paulo é muito relevante. Isso mostra que nas eleições municipais Bolsonaro acabou sendo mais responsabilizado pela pandemia do que vinha sendo.
O resultado do Centrão vinculado ao bolsonarismo poderia ter sido melhor? Se fosse maior, a gente nem estaria falando de três campos. Estaríamos falando só de dois, porque (o resultado do Centrão) foi muito grande. Agora, Bolsonaro ganhou ou perdeu? De um lado, perdeu porque o efeito parece ter sido de ser mais responsabilizado pela condução da pandemia do que vinha sendo. Por outro lado, a base que ele montou no Congresso se saiu muito bem nas eleições. Se você olhar só PP, PL e Republicanos, esse núcleo duro, e colocar ali o PSD, é muito relevante o número de votos recebidos, o número de prefeituras conquistadas. Ele conseguiu ter uma base de prefeitos muito importante, para pensar numa recandidatura em 2022.
A diminuição da polarização é uma falsa impressão? Antes de 2013, naquele mundo que tinha PT e PSDB como os dois polos principais, a polarização era entre direita e esquerda democráticas. Esse mundo acabou no momento em que Bolsonaro chega. Essas eleições municipais mostraram que a polarização é entre o campo democrático e Bolsonaro. No campo democrático existe uma disputa política dura. Isso não significa que seja uma disputa de mesmo caráter. Basta ver São Paulo. Guilherme Boulos associa Bruno Covas ao Bolsonaro não no sentido de dizer ‘você é igual a ele’, mas ‘vocês permitiram que a extrema-direita chegassem ao poder’. Covas liga para Boulos para pedir desculpas pelo que um correligionário dele disse e com o que ele não concorda. É uma campanha dura, mas não é de ódio. A gente tem de distinguir polarizações.
No campo da direita, o DEM cresceu de forma significativa. Qual a probabilidade de isso bagunçar internamente a organização desse campo? É isso que faz com que, agora, a conversa tenha de ser muito mais colegiada. Não tem como um partido impor sua candidatura e dizer ‘sou o líder desse campo, tenho de indicar a cabeça de chapa’. Isso vale tanto para a direita tradicional quanto para a esquerda. Essa eleição deixou todo mundo, mais ou menos, do mesmo tamanho. Não há ninguém inconteste.
Isso afeta a construção da frente ampla de que tanto se fala? Isso é o que permite a frente ampla. O que acontece normalmente é que, onde existe uma força de extrema-direita organizada, as demais forças do campo democrático se organizam para impedir que ela chegue ao poder. No Brasil, isso não aconteceu e a extrema-direita chegou ao poder. Como Bolsonaro puxou tudo para a extrema-direita, a direita tradicional precisa se distinguir dele. Precisa se reorganizar, sem que ninguém tenha hegemonia. A mesma coisa vai acontecer na esquerda. No momento em que você tiver essas conversas amadurecidas, a direita democrática vai poder conversar com a esquerda democrática, e vão poder se entender sobre o fato de que a reeleição de Bolsonaro é um risco que a democracia brasileira não pode correr.
Não vai haver a insistência de alguns partidos em tentar exercer a hegemonia, a exemplo do PT nos últimos anos? O PT não vai, voluntariamente, abrir mão da sua pretensão hegemônica. Ele vai ser obrigado a isso, pela correlação de forças. Chegamos a uma situação em que não existe outra saída senão negociar.
Ou seja, há razões para que os dois campos democráticos conversem para derrotar o terceiro. Isso é viável. Vai acontecer? Não sei. Depende da mobilização da sociedade, do interesse dos partidos, das instituições. A chance de Bolsonaro se reeleger é que se repita 2018, ou seja, que ele consiga se reeleger com base na divisão do campo democrático. Existe também o interesse do Bolsonaro de que essa frente não se forme. E como tem muito ego, mágoa, xingamento, rasteira, não é fácil que essa conversa aconteça tanto dentro dos dois campos quanto entre eles.
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