Um dos criadores da urna eletrônica no Brasil, o matemático Giuseppe Janino diz que o dispositivo alçou o País à posição de referência mundial em votação eletrônica. No mês em que a apuração da eleição presidencial dos Estados Unidos deixou milhares de pessoas ao redor do globo em suspense por dias, Janino diz que a tecnologia tem o potencial de tornar a contagem de votos mais rápida, além de garantir maior acessibilidade na votação para deficientes e analfabetos. "Nosso sistema é confiável", afirma, em reação aos que defendem a volta do voto impresso, como o presidente Jair Bolsonaro.
Atual Secretário de Tecnologia e Informação do Tribunal Superior Eleitoral, Janino descreve, em entrevista ao Estadão, os principais mecanismos de segurança da urna, que virou alvo preferencial de desinformação nas redes. Ele narra o surgimento da urna eletrônica no País e apresenta também quais tecnologias podemos esperar para as eleições do futuro. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Como funciona a urna eletrônica e como foi seu processo de criação no Brasil?
A urna eletrônica veio para mudar um paradigma que nós tínhamos no passado, quando votávamos com cédulas de papel que no final eram abertas e contadas em uma mesa. Tínhamos um processo lento, repleto de erros e com muitas fraudes, levando até semanas para se apresentar o resultado. Isso foi o grande motivador para uma mudança, e a opção foi a tecnologia. Em 1996, surgiu a primeira urna eletrônica, que viabilizou que tenhamos hoje a maior eleição informatizada do mundo. A urna eletrônica realiza a captação do voto e a apuração, garantindo que fique registrado exatamente aquilo que o eleitor escolheu. E, no final, ela faz a contagem dos votos.
Nos Estados Unidos, a contagem de votos durou dias até que fosse anunciado o vencedor Joe Biden. A urna eletrônica evita um cenário como este?
Aqui, a urna eletrônica faz a apuração e temos o resultado quase que imediatamente. Nos EUA, alguns Estados adotam o voto convencional, em papel, e isso se assemelha muito à situação que nós vivemos há 30 anos. Países de primeiro mundo votam em papel porque não passaram pela nossa história, que foi o grande motivador de uma mudança. Tínhamos diversos tipos de fraude.
Que tipos de fraude?
Desde urnas que já vinham com voto dentro até o ‘voto formiguinha’: ficava um despachante na porta da seção que negociava com o primeiro eleitor falando ‘olha, te dou dinheiro, você vai lá dentro e, quando pegar a cédula oficial, coloca no bolso e me entrega quando sair’. Aí ele preenchia e entregava para o próximo candidato, pedindo para depositar aquela e trazendo uma nova cédula em branco para fora. Nossa história motivou uma mudança nesse modelo, e essa transformação nos tornou uma referência mundial em votação eletrônica. Já recebi mais de 70 delegações interessadas em conhecer nossa solução.
Como o modelo atual evita fraudes?
Temos vários mecanismos de garantia de segurança. A urna não funciona com um software que não seja de autoria do TSE ou que tenha sido adulterado. Tudo que ela gera, ela assina - como um certificado digital - e podemos conferir depois se o boletim de urna saiu de uma urna oficial e se não foi adulterado. Além disso, a urna eletrônica tem uma espécie de ‘caixa preta’, que grava tudo que acontece com ela, como o dia em que foi ligada e quando registrou o primeiro voto. Esse também é um mecanismo de auditoria. Existe ainda uma barreira física: quando você carrega o software nela, você lacra as portinhas onde tem o cartão de memória. São 30 barreiras digitais, que contam inclusive com testes públicos de segurança. Todos esses são mecanismos que impedem fraude. Tanto que temos uma história de 24 anos usando a urna eletrônica, e não há nenhum caso de fraude até hoje.
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro defendeu o voto impresso e falou que precisamos ver “o que acontece em outros países e buscar um sistema confiável”. Como o senhor avalia esta proposta?
Nosso sistema é confiável. Somos referência no mundo e temos muitos mecanismos de auditoria e verificabilidade, inclusive com o próprio eleitor participando em vários eventos de auditoria. A questão do voto impresso volta àquilo que conseguimos abandonar, que é a mão do homem no processo. Se imprimir o voto, alguém vai ter que contar, e com isso voltam as possibilidades de adulteração.
Como o modelo atual impacta o eleitorado?
Nossa urna tem muito de acessibilidade. O teclado da urna tem a mesma disposição que o de um telefone. Ela tem uma estampa em braile em cada tecla, o que permite com que o deficiente visual identifique as teclas, além de um dispositivo de áudio para que ele ouça aquilo que está digitando. A urna permite que você digite números e veja a foto do candidato. Ou seja, permite que o analfabeto vote - ele digita o número e vê a voto. Para confirmar, a tecla é verde. A urna eletrônica não só trouxe todos os atributos de integridade e segurança, como também incluiu segmentos da sociedade que estavam fora do processo, como o analfabeto e o deficiente visual.
Foi noticiado que o TSE vai testar um sistema de votação pela internet. O que podemos esperar para as próximas eleições?
O ministro (e presidente do TSE Luís Roberto) Barroso instituiu um grupo de trabalho para estudar as votações do futuro, possivelmente utilizando dispositivos pessoais como smartphones. Está se abrindo uma nova frente de estudos desse tipo de solução. Existem vários desafios nisso, de trazer tudo aquilo que conquistamos com a urna eletrônica. Um deles é garantir o sigilo do voto, que existe para que o eleitor não sofra coação. Outra questão é a possibilidade de o eleitor acabar vendendo seu voto. Esse tipo de situação é evitado no modelo atual. Quando o sujeito entra na cabina de votação, o mesário dá a ele a condição de votar sozinho, sem coação e em sigilo. Garantir isto é um dos desafios.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.