Assim como o ditador Nicolás Maduro confrontou e pôs o presidente Lula contra a parede, sem saída, o bilionário Elon Musk peitou o ministro do Supremo Alexandre de Moraes e transformou o Brasil num teste para seu poder mundo afora. A posição de Lula ficou mais complexa, tortuosa, mas a reação de Moraes foi rápida, direta e implacável: a suspensão das operações do X, ex-Twitter, no Brasil. Uma forma de dizer, interna e internacionalmente, que o País tem Constituição, leis e instituições, não é uma “terra de ninguém” ou “uma casa da Mãe Joana”.
No seu voluntarismo, Moraes teve que rever em poucas horas a decisão de vetar o uso do VPN para driblar a suspensão do X e há uma intensa discussão jurídica, sobretudo sobre dois pontos centrais, a intimação de Musk pela própria plataforma e a cobrança das multas do X à Starlink, outra empresa do grupo comandado por Musk que tem enormes interesses no Brasil, inclusive contratos com as Forças Armadas. Usar o X para intimar Musk foi seguindo a realidade dos avanços tecnológicos e por uma objetiva falta de alternativa, mas a cobrança à Starlink é questionável. Além disso, a guerra é muito maior do que apenas jurídica.
Na avaliação de setores importantes dos Três Poderes, Musk não é apenas um bilionário, mas um ativo e poderoso jogador político, com engajamento ideológico inequívoco – leia-se, a favor da extrema direita internacional – e a intenção de manchar a imagem do Brasil e desestabilizar o Supremo e o próprio governo Lula. A compra do antigo Twitter não teve contornos de um excelente negócio financeiro, mas sim de uma ação política que, apesar de trazer grandes prejuízos, tem um objetivo de longo alcance: o uso das redes para projetar aliados à direita e atacar adversários à esquerda, inclusive com carta branca para fake news.
Agora amigão do argentino Javier Milei, Musk veio ao Brasil em maio de 2022, ano da eleição presidencial. Em vez de visitar o então presidente Jair Bolsonaro no Planalto, foi o presidente quem se deslocou até o interior de São Paulo para um encontro que, até hoje, não ficou exatamente claro. Trataram de Starlink? Ou de política e da estratégia para o avanço da direita internacional?
A dúvida é reforçada pela atuação de Musk mundo afora, submisso às leis e normas de regimes mais fechados, como China, Índia e Turquia, mas refratário a cumprir decisões judiciais no Brasil, como se a democracia mais importante, populosa e rica da América Latina estivesse sendo usada como “teste”: até onde o X, a internet e as fake news podem ir? E o próprio Musk?
Enviada por correio, email, redes sociais, fax ou até o telex do século passado, não interessa, o fato é que a intimação de Moraes a Musk faz todo o sentido, ao exigir que ele apresentasse um representante legal, com qualificação para a função, cumprisse as leis brasileiras e pagasse as multas que lhe foram aplicadas desde que o X descumpriu decisão judicial e manteve no ar posts contendo ataques, ameaças e mentiras, no que Moraes resume como “atentados à democracia” no ano eleitoral. Vamos combinar? Independentemente de excessos de Moraes, trata-se de uma decisão razoável do Judiciário de um país soberano, com leis próprias.
Em nota curta e confusa, a embaixada americana em Brasília, a quem Musk agradeceu, defendeu que “a liberdade de expressão é um pilar fundamental em uma democracia saudável”. Na decisão contra o X e no seu parecer em recursos das plataformas contra suspensão de perfis, Moraes rebateu: “Não se confunde liberdade de expressão com impunidade para agressão”.
Esse confronto reproduz as visões diferentes de EUA e Brasil sobre a questão. Lá, praticamente tudo é liberado, sob alegação de que bloquear seria censura. Cá, o que é crime na vida real deve ser considerado crime na virtual e ação preventiva não é censura, é civilidade e legalidade, uma divisão entre democracia e “democratice”. Afinal, qualquer um pode ameaçar as instituições, as eleições, o Supremo, as famílias dos ministros? Bloquear quem faz isso é “censura”? Se o termo “democracia” dominou o debate até 2023, o termo no centro da guerra ideológica em 2024 é “liberdade”, cada lado usando o conceito a seu bel prazer.
Independentemente disso, Moraes precisa refletir bem, porque a cobrança da Starlink, a ida e vinda do VPN e a multa a usuários sacodem não só os meios jurídicos, mas mobilizam o bolsonarismo, as próprias redes e, portanto, a opinião pública. Ele votou contra 39 recursos de plataformas contra o bloqueio de perfis sob o argumento de que eles não são parte da investigação, só destinatários das notificações, e, portanto, não podem recorrer. Mas os sócios da Starlink, o VPN e os usuários do X também não são alvo das investigações do X, logo, não podem pagar o pato.
A crise com Musk e X terá novos lances, inclusive com a possibilidade de negociações de uma saída nos bastidores, mas isso exigiria um jogo de sangue frio. Como esperar “sangue frio” de Musk e de Xandão? Além disso, a interpretação em amplos setores é que o alvo do bilionário não é Moraes, mas o STF, o próprio Judiciário, até o governo Lula e a democracia brasileira. Um teste sobre até onde o poder, o dinheiro e a articulação da extrema direita internacional podem ir. Na tentativa de dar um basta nisso, Xandão pode estar fazendo justamente o jogo de Musk e do que ele representa.
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