Era domingo, 8/1 de 2023, e o ex-metalúrgico Luiz Inácio da Silva, recém-empossado para seu terceiro mandato na Presidência da República, levou um susto ao saber da invasão e do quebra-quebra do Planalto, Supremo, Câmara e Senado e tomou três decisões: transformar a Prefeitura de Araraquara em quartel general de resistência ao golpe, só voltar a Brasília em plena segurança, depois da situação controlada, e não aplicar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que significaria botar tropas e tanques do Exército nas ruas – principalmente na Praça dos Três Poderes.
Acertou nas decisões, mas a principal delas partiu da primeira-dama Janja da Silva: recusar o que idealizadores do golpe, civis e militares, queriam: a GLO. O Exército iria para a rua legalmente, dentro da Constituição. Só que, em vez de garantir a lei e a ordem, ficaria assistindo e, assim, aprofundaria o caos. As cúpulas das Forças Armadas, porém, se recusaram. E, no dia fatal, Lula vetou a GLO.
Ao entrar em campanha para a eleição presidencial de 2018, o capitão insubordinado Jair Bolsonaro mirava quatro segmentos que lhe serviriam como eleitores e que, mais adiante, ele cooptaria como golpistas: Forças Armadas, polícias estaduais, igrejas evangélicas e os Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), civis apaixonados por armas, num ambiente em que há muita gente boa, mas é favorável a valentões que adoram tiros, brigas, confusões e “patriotadas”.
Presidente, Bolsonaro não perdia uma formatura, um evento qualquer de militares e policiais e acompanhava a mulher, Michele, evangélica fervorosa, a cultos e encontros religiosos. Ele próprio, aliás, tomara uma providência bem adequada antes da campanha à Presidência: batizar-se no Rio Jordão, em Israel, para virar evangélico. Não por fé, mas por conveniência eleitoral.
Mal subiu a rampa do Planalto, e lá estava Bolsonaro liderando atos golpistas, com ataques ao Supremo e Congresso e faixas pedindo a volta dos militares. Nem a pandemia de Covid suspendeu o movimento, que usou até o Quartel Militar do Exército, em Brasília, como pano de fundo, enquanto generais, coronéis e capitães se infiltravam em todas as brechas de poder civil, inclusive o Planalto, e pessoas chaves eram distribuídas por áreas estratégicas, como a Justiça e o Itamaraty.
A internet, já embalada pela facada de 2018, a fé ingênua e o conservadorismo de costumes, fez o resto: construiu o mito, dominou corações e mentes, difundiu fake news, enlameou a imagem das instituições e da mídia e arregimentou milhões. Logo no início, foi se ensaiando o discurso do golpe, desconstruindo a confiança da população nas urnas eletrônicas com o mesmo fervor e a mesma insistência com que nas vacinas. Se o mito falou, amém!
Estava tudo pronto para a hipótese de Bolsonaro não se reeleger: bastava botar uns malucos dando tiros no Supremo e no Congresso (no fim, foram milhares e, em vez de tiros, depredaram o que puderam). A polícias do DF, responsáveis pela segurança dos três poderes, fariam vista grossa; o Exército seria convocado. Pelas minutas de golpe encontradas pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seria fechado e substituído por uma comissão mista, metade civil, metade... militar. E o Supremo?
Se previam que o ministro Alexandre de Moraes seria preso ou enforcado na Praça dos Três Poderes, não se sabe, mas certamente ele e o Supremo seriam alvo. Mas foi justamente o Supremo quem viu de longe, monitorou o golpe e esteve sempre na linha de frente da resistência a ele. E na cúpula militar, por mais que rejeitasse a volta de Lula e do PT, prevaleceu o dever legalista.
A história e as investigações vão mostrar que boa parte dos militares até trabalhou, torceu ou lavou as mãos para um golpe a favor do capitão mito, mas confirmarão também o que o próprio Moraes atesta: o golpe não foi consumado, ou não deu ainda mais trabalho para as instituições, porque as Forças Armadas, institucionalmente, não aderiram.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.