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Opinião | Histórias de garra e superação explodem em copas e olimpíadas, mas o fundamental é educação

Exemplos de garra depois vão se perdendo com o vento e a rotina de um País que convive com uma das maiores desigualdades do mundo

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Foto do author Eliane Cantanhêde
Atualização:

Rebeca Andrade é uma síntese da maioria dos brasileiros: pobre, negra, de periferia e de uma família em que uma mãe solo, empregada doméstica, cuidou obstinadamente dos sete filhos. Enquanto Rebeca fazia um solo incrível, vencia e recebia a medalha de ouro em Paris, sob o Hino Nacional e a reverência emocionante das americanas Simone Biles, prata, e Jordan Chiles, bronze, me vinha uma pergunta: há pouquíssimas Rebecas por aí, mas quantos e quantas no Brasil, cheios de talentos nas mais diferentes áreas, não só nos esportes, têm o estímulo e a “sorte” da nossa maior campeã olímpica da história?

Segundo os estudiosos, 90% das conexões cerebrais e do desenvolvimento cognitivo, social, físico e emocional ocorrem até os seis anos de idade e Rebeca reúne tudo isso de uma forma impressionante, inclusive porque não deve ter sido nada fácil para sua mãe criar sete filhos com salários e condições mínimos. E foi graças a uma tia, funcionária pública, que a menina de quatro anos começou a treinar num projeto social e revelou-se um prodígio.

Rebeca Andrade é um exemplo de superação que vemos nas olimpíadas em meio à desigualdade que assola o Brasil Foto: Alexandre Loureiro/COB

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Sorte? Acaso? Magia? Dedo divino? Com Rebeca deu certo, mas não é o que ocorre com as Marias e Joões que têm a mesma origem e precisam não de sorte ou acaso, mas de escolas que tenham professores capazes, condições adequadas e sirvam como alavanca de inclusão social e também impulso de talentos, habilidades e o justo direito a um lugar ao sol, seja em gramados, quadras, escritórios, laboratórios, cátedras, ou o que for.

Priscila Cruz, do Todos Pela Educação, lembra que 74% das crianças do CadÚnico na primeira infância vêm de lares chefiados por mulheres; leia-se, comandados por uma mãe com excesso de responsabilidades e muitas vezes falta de tudo, comida, esgoto, água tratada, colchão macio, livros. Se a mãe não é como D. Rosa, a tia não cobre a licença de alguém e no trabalho dela não tem projeto social, como ficam os pequenos dessas famílias?

Assim com Rebeca caiu por acaso no projeto de uma prefeitura, Beatriz Souza, que deu o primeiro ouro e um show de emoção ao Brasil em Paris, foi pescada pelas Forças Armadas, que contribuem com 47% da delegação brasileira. São 130 atletas: 98 sargentos, como Bia, e 32 que passaram pelo Programa Atleta de Alto Rendimento (PAAR). Os militares têm recursos e programas para formar e estimular atletas de ponta. E as escolas e universidades?

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Apesar de desdenhada, a educação física é fundamental para a formação física e mental das crianças, tenham ou não habilidade para ir tão longe. Caio Bonfim, um menino magrelo da periferia de Brasília, tinha problemas na escola, tirava notas baixas, recebia uma advertência atrás da outra, até enveredar pelo futebol, migrar para a marcha atlética e, assim, ajustar-se às aulas e finalmente ganhar medalha de prata em Paris.

As histórias de superação e garra são admiráveis e se repetem, uma atrás da outra, durante olimpíadas e copas, mas depois vão se perdendo com o vento e a rotina de um País que convive com uma das maiores desigualdades do mundo. Valdileia Martins começou a brincar de salto em altura com a vara de pescar do pai num assentamento do MST no Paraná e chegou às finais, até sofrer uma grave lesão.

Essa nossa gente precisa de educação, estímulo e confiança desde cedo, não apenas de patrocínios quando já estão lá, nas nuvens e nos pódios, com medalhas no peito, cara a cara com a goleira do time adversário e fazendo o gol que garantiu a classificação para a semifinal do futebol feminino, como a brasiliense Gabi Portilho.

Mães diligentes, tias vigilantes, pais presentes são indispensáveis sempre, em qualquer circunstância, assim com projetos sociais, programas militares, sorte e acaso, mas isso não substitui a escola, instrumento fundamental (pelo menos em tese) para a vida, justiça social, igualdade de condições, privilégio a talentos e chances para as crianças que não tenham habilidades especiais, mas direito a progresso e uma vida digna. Além de síntese e um ídolo para a história, Rebeca Andrade é um exemplo que nos traz boas reflexões.

Opinião por Eliane Cantanhêde

Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e da GloboNews

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