Só um poder será capaz de estancar a audácia de Donald Trump: a sociedade americana, que até aqui assiste, inerte, ao processo inevitável de inflação, aumento de custos da indústria, demissão em massa de funcionários, perseguição de militares legalistas, desmonte do controle de voos em meio a sucessivos acidentes e erros, o fim do “soft power”, da USAID e da ajuda humanitária americana ao redor do mundo e a uma política externa espalhafatosa e belicosa – o oposto, portanto, da boa diplomacia.
A vocação de Trump é implodir consensos e causar rachas profundos não apenas no mundo, mas nas instituições e na sociedade dos EUA, jogando todos contra todos e transformando seu governo numa religião cheia de inimigos e dogmas. Aos que acreditam, tudo; aos que não, a lei – a sua lei, que as redes sociais e Elon Musk executam.

O efeito bumerangue já começa no mundo. Canadá e México passam por uma união interna raramente vista, com a popularidade de Justin Trudeau e Claudia Sheinbaum disparando, e a Europa deixa de lado diferenças e estranhamentos e se une para enfrentar o tsunami Trump, inclusive com a adesão do Reino Unido. A ameaça nuclear volta ao radar.
Os Brics, que articulam uma moeda alternativa ao dólar, foram criados como contraponto à hegemonia dos EUA. Trump, porém, não bate de frente com o bloco; racha o bloco. Enquanto negocia um cessar-fogo na Ucrânia com o amigão Vladimir Putin, da Rússia, expulsa o embaixador da África do Sul nos EUA e não só impõe sobretaxa a aço e alumínio do Brasil como apadrinha a ingerência americana no Judiciário e na política brasileira.
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Trump, que vem perdendo batalhas na justiça dos EUA, também racha as Américas. O primeiro presidente recebido por ele após as eleições foi Javier Milei, da Argentina, e o primeiro a receber um enviado especial do seu governo à América do Sul foi Nicolas Maduro, da Venezuela que fechou “negócio” para receber de volta opositores do regime que se amontoam em Miami. O que Maduro fará com eles?
As ameaças se transformam em fatos. O Brasil, afora uma ou outra manifestação do presidente Lula, reage falando e confrontando pouco, mas monitorando todos os movimentos de Trump e traçando sua estratégia. Lula vai agora ao Japão e ao Vietnã, abrindo mercados na Ásia para escapar da taxação americana, e embarca em junho com uma agenda mais política para a França, que lidera a resistência europeia a Trump.
É preciso articular e agir já, antes que Trump passe das palavras aos atos para anexar Canadá e Groenlândia, assumir o Canal do Panamá, estraçalhar o comércio global e implodir as bolsas, as indústrias, a economia e a estabilidade interna nos EUA. Além, claro, de abrir brechas na soberania do Brasil.