O que começa errado tende a dar errado até o fim e este é exatamente o caso, não só da eleição do anarcocapitalista Javier Milei à presidência da Argentina como também das relações entre Milei e Lula. Se fosse só entre os dois, problema deles. Como é entre os dois principais países do Mercosul, a coisa complica, e muito. Estão em jogo as relações bilaterais, a sobrevivência do bloco, o acordo com a União Europeia, o próprio equilíbrio do Cone Sul e as negociações com o resto do mundo.
Milei foi eleito com uma margem bem ampla (mais de 10 pontos) no domingo, às vésperas de três eventos relevantes nesta semana em Brasília. Primeiro, a conclusão das negociações entre Mercosul e União Europeia e a reunião 12 X 12, entre os ministros de Defesa e de Relações Exteriores dos 12 países da América do Sul. Como Milei ameaçou retirar a Argentina do Mercosul, imaginem o climão nos preparativos para o anúncio do acordo e para a reunião.
O terceiro evento é entre os chanceleres dos oito países amazônicos (incluindo Guiana e Suriname), para tratar de um outro incêndio: esse clima desvairado que, ao mesmo tempo em que lambe a Amazônia, causa grandes enchentes no Sul e um calor infernal no Sudeste e Centro Oeste do Brasil. Um dos símbolos da campanha de Milei foi... uma motosserra! Ok, era para simbolizar o corte drástico nos gastos públicos, mas remete diretamente, e sem nenhuma dúvida, a ambiente, clima, florestas, essas “bobagens” que a extrema direita detesta, ou despreza, como “coisa de comunista”.
Durante a campanha, Milei xingava Lula justamente de “ladrão” e “comunista”, avisando que não queria nada com ele, enquanto Lula despachava o PT e seus próprios marqueteiros para apoiar, e se embolar, com o agora derrotado Sérgio Massa, candidato peronista. O peronismo perdeu, Lula e o Brasil perderam juntos. Mas houve quem ganhasse: Jair Bolsonaro, amigão de Donald Trump e agora de Milei, formando um trio do balacobaco contra a democracia.
No primeiro discurso depois de eleito, Milei foi menos histriônico, mais adequado, e falou inúmeras vezes em transformar novamente a Argentina numa “grande potência”, mas sem avançar sobre suas ideias e seus programas, que continuam sendo incógnitas e, portanto, ameaçadoras, como acabar com o Banco Central e dolarizar a economia. Mas uma coisa é certa: a beligerância contra o Brasil, que as duas chancelarias achavam que evaporaria após as eleições, não evaporou e está passando das palavras aos atos.
Na reta final das eleições, Lula fez um “apelo ao voto democrático”, sem citar nenhum dos dois, e Janja publicou na internet uma charge com um abraço entre dois personagens icônicos dos quadrinhos, a argentina Mafalda e a brasileira Monica, com uma legenda provocativa: “que Massa esse abraço”. Infantil e desnecessário, que pode custar caro. E agora? Milei já anunciou que romperá a tradição e suas primeiras viagens serão aos Estados Unidos e a Israel, não ao Brasil. E Lula revida.
No dia da vitória de Milei, o presidente brasileiro, pelas redes, desejou “sorte e sucesso” ao novo governo, sem incluir o nome do presidente eleito. No dia seguinte, o chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Paulo Pimenta, avisou que Lula não vai telefonar para cumprimentar Milei, o que é diplomaticamente obrigatório, até que ele peça desculpas pelos xingamentos da campanha. Então, parece que não vai ligar nunca... Como também não quer ir à posse, em 10/12, abrindo espaço para um brilhareco de Bolsonaro no país vizinho e na região.
É assim que, além de ser uma real ameaça política, econômica e social para uma Argentina já tão combalida, Javier Milei joga seu país contra o Brasil, traz o fantasma da extrema direita de volta e dá a Lula um problemaço para o presente e uma ameaça para o futuro. Com a vitória do absurdo Milei na Argentina, a dianteira do absurdo Trump nos EUA e o Brasil dividido ao meio, como ficam o absurdo Bolsonaro e o bolsonarismo?
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