Os Estados Unidos tinham boas razões para empurrar com a barriga a votação de uma “pausa humanitária” articulada pelo Brasil na guerra de Israel. Com o amplo apoio à proposta de resolução entre os 15 membros do Conselho de Segurança da ONU, cinco permanentes e dez rotativos, o governo Joe Biden sabia que seria o único voto contrário, ficaria isolado no próprio conselho e atrairia chuvas e trovoadas do mundo árabe e de sociedades mundo afora.
Foi o que ocorreu, depois que o Brasil percebeu a manobra protelatória e submeteu a resolução a voto. Todos os membros rotativos, inclusive o Japão, aliado dos EUA, votaram a favor da pausa para proteger as populações civis que já sofreram tanto nesta guerra. Dos cinco permanentes, dois votaram a favor, França e China, e dois se abstiveram, Rússia e Reino Unido, o que é considerado positivo, pois a abstenção não impede a aprovação.
Com poder de veto, os EUA, sozinhos, na contramão dos demais, derrubaram a resolução consensual, alegando que o texto não previa o direito de Israel de reagir ao ataque terrorista do Hamas. Itamaraty e Planalto rebatem: esse direito é legítimo e já é garantido pelas leis internacionais, só não se pode confundi-lo com provocar um êxodo obrigatório de mais de um milhão de pessoas e impor condições subumanas a famílias inteiras de civis, sem casa, água, luz, comida e medicamentos.
Afinal, por que não aprovar uma pausa na guerra, temporária, restrita geograficamente, diferente de um cessar-fogo? Enquanto isso, os EUA enviavam a Tel Aviv o secretário de Estado, o secretário de Segurança e, enfim, o próprio presidente Joe Biden, para ratificarem sua aliança histórica e incondicional a Israel e negociarem por conta própria, e não com as Nações Unidas, não em aliança com a comunidade internacional. Donos do mundo?
Para os negociadores brasileiros, os EUA conseguiram assim reavivar seu desdém arrogante pela ONU, que já ficara evidente quando deram de ombros para o Conselho de Segurança e decidiram unilateralmente invadir o Iraque em 2003, aliás, primeiro ano do primeiro mandato do presidente Lula. Pior: com base numa profusão de fakenews. O mundo viu que os iraquianos nem arsenal tinham, quanto mais armas químicas e biológicas.
Além disso, na avaliação brasileira, os EUA estão arranhando sua imagem de grande democracia que defende o multilateralismo e lidera o respeito aos direitos humanos e as leis internacionais. Também perderam argumentos contra a Rússia na guerra da Ucrânia e reavivaram o antiamericanismo, sobretudo no mundo árabe, mas não só. A Jordânia cancelou a reunião com Biden, o Egito vai sediar neste sábado uma reunião sobre a questão sem os EUA e manifestações contra Washington pipocaram na França, na Turquia, no Líbano... Isso tudo a um ano das eleições presidenciais americanas, com Biden derrapando e Donald Trump se assanhando.
O Brasil nem teve uma vitória nem uma derrota estrondosa, como as torcidas dos dois lados esperavam, mas faça-se justiça: o Itamaraty voltou a atuar, o chanceler Mauro Vieira tem sido incansável, o embaixador Sérgio Danese coordenou bem as reuniões do conselho da ONU. E o assessor internacional Celso Amorim e a diplomacia brasileira também tiveram papel ativo no acordo entre Venezuela e EUA e na retirada de mais de mil nacionais de Israel.
Falta agora trazer de volta em torno de 30 brasileiros ilhados em Gaza, correndo alto risco, mas isso depende mais de Israel e Egito do que do governo brasileiro. Que, aliás, não vai discutir as versões divergentes sobre quem, afinal, bombardeou o hospital em Gaza, com 500 mortos. “Nesse pântano não vamos entrar”, resumiu quem está na linha de frente das negociações e dá a dimensão da atuação brasileira: “A gente faz o que é possível”.
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