Depois da série de cenas de barbárie da polícia de São Paulo, tida e havida como a melhor e mais preparada do País, o governador Tarcísio Gomes de Freitas teve de fazer um “meia volta, volver”, admitir o “equívoco” de se opor ao uso de câmeras corporais e, por fim, pedir desculpas públicas pela sua política de segurança pública, suas declarações sobre o tema e os efeitos degradantes na tropa. Ok. E o executor dessa política, Guilherme Derrite, continua?
Derrite é a confirmação ambulante da dupla personalidade política de Tarcísio, que se sente devedor e precisa da base eleitoral do padrinho Jair Bolsonaro, mas sabe que só alçará voos mais altos se ampliar seu raio de apoio para o centro, à custa de moderação. Em São Paulo, isso tem cara e nome: o eleitor tucano, que está órfão.
Indicado – ou imposto? – por Bolsonaro para a Secretaria de Segurança, Derrite simboliza, propaga e executa uma política de segurança reprovada por governos, especialistas e cidadãos no mundo democrático, porque junta brutalidade e ilegalidade com ineficácia. As estatísticas mostram, com clareza, que a violência policial disparou em sua gestão em São Paulo. Só coincidência?
Como ele diz, é “vergonhoso” um policial matar menos de três pessoas em cinco anos. Como a revista Piauí apurou, ele já foi investigado por operações policiais que resultaram em 16 homicídios. E, como seu currículo informa, ele foi afastado da Rota por “excesso de letalidade”.
Esse perfil remete ao policial que foi reprovado no primeiro teste psicológico e acaba de matar um jovem negro, desarmado, com onze tiros pelas costas. Alguém sem equilíbrio psicológico pode sair por aí, armado pelo Estado? E alguém tão obcecado por homicídios e já punido por isso pode ser secretário justamente de “segurança”?
Assim como cidadãos e cidadãs comuns deixaram de tomar vacina e de vacinar seus filhos por influência do Jair Messias, a polícia paulista parece ter se sentido liberada, pela nomeação de Derrite e as declarações do governador, para matar, espancar e humilhar livremente bandidos e não bandidos – desde que pobres, de periferia e preferencialmente pretos. Com quem dirige um Porsche e mata um pai de família a 200km/h, o papo é outro – apesar de também fora do manual, no sentido oposto.
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Aumenta dia a dia a pressão pela demissão de Derrite. Enquanto isso, Tarcísio acusa o golpe, na sua imagem, na sua popularidade, no seu governo, ao recuar e passar a admitir o uso de câmeras nos uniformes como necessários tanto para o policial quanto para o cidadão ou cidadã. O Brasil inteiro está estarrecido com imagens de celulares e câmeras de prédios e empresas. As mortes e agressões teriam ocorrido se os algozes em serviço portassem câmeras no próprio peito?
A carreira policial é tão fundamental quanto difícil, sofrida, perigosa e exige muito, inclusive, da própria família, sempre sob tensão. Isso, porém, não justifica um policial matar com onze tiros, pelas costas, um rapaz desarmado que acabara de roubar quatro pacotes de sabão em pó num supermercado. Um segundo jogar de uma ponte, como se fosse um saco de lixo, um motoqueiro que não parou numa blitz. Dois espancarem e matarem a tiros um cidadão sem camisa, muito menos sem arma, já rendido, encurralado, no chão.
Há, ainda, o vídeo da mulher de 63 anos que reagiu com surpresa a uma ação policial na sua casa e levou socos, pontapés e foi parar no hospital, algemada, para levar pontos na testa por ferimento a cassetete. Outra mulher foi jogada no chão, espancada por um grupo de policiais e levou um mata-leão, que é proibido. E o policial que entrou numa adega quebrando tudo? Sem contar os ex-policias rodoviários que acabam de ser condenados em Sergipe por assassinarem Genivaldo Santos, com gás, no porta-malas de um carro.
Com a adesão de Tarcísio ao plano federal de câmeras em uniformes policiais, São Paulo vai receber R$ 27 milhões para receber os equipamentos e tentar reverter os “excessos de letalidade” incentivados por Derrite e estão no centro do “modus operandi” no principal Estado do País, décadas depois do “bandido bom é bandido morto”.
Aliás, a Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de condenar o Estado brasileiro pelo “desaparecimento” de onze jovens na favela de Acari, no Rio, em 1990. Nenhum corpo foi achado, nenhum culpado foi apontado, muito menos preso, e os dois parentes que ousaram investigar por conta própria foram executados. Depois de 34 anos, o que mudou? O crime organizado e as milícias se fortalecem ano a ano e a polícia mata e morre numa guerra sem fim.