Os áudios de um “desabafo” do tenente-coronel Mauro Cid acusando o ministro Alexandre de Moraes e a Polícia Federal de usá-lo apenas para confirmar uma “sentença pré-definida” e uma “narrativa pronta” podem ser comparados a uma “Vaza Jato” dos vários inquéritos contra Jair Bolsonaro, seus ministros, generais e aliados. Assim como a “Vaza Jato” definiu (ou foi o pretexto para) o fim da Lava Jato, os bolsonaristas tentam agora usar as gravações de Cid para desacreditar tudo o que já está amplamente provado sobre, por exemplo, a trama do golpe de Estado.
O objetivo da “Vaza Jato” e da gravação é o mesmo: fazer tudo para convencer parte da Justiça, o mundo político e principalmente amplos setores da sociedade de que o processo foi viciado e os métodos, ilegais, ilegítimos e impregnados de interesses políticos. A “Vaza Jato” revelou mensagens consideradas comprometedoras do então juiz Sérgio Moro com procuradores da Lava Jato e deu certo. Hoje, absolutamente todos os condenados estão livres, leves e soltos. Com os áudios de Cid, dará?
Alexandre de Moraes não é Sérgio Moro. Moro saiu de uma assessoria do Supremo, virou juiz em Curitiba e entrou para a política atabalhoadamente. Moraes, ou Xandão, tem um currículo mais sofisticado e uma personalidade muito mais forte. É ministro do Supremo, foi secretário de Segurança de São Paulo e ministro da Justiça e circula bem no ambiente político, além de ter “lombo curtido”: não cede, aliás, nem dá bola para críticas, ataques e pressões. Vai em frente e, como se diz em Brasília, é implacável e “rápido no gatilho”.
E Paulo Gonet não é Augusto Aras. Aras trabalhou intensamente para destruir a Lava Jato e jogou no lixo as milhares de páginas do relatório final da CPI da Covid contra Bolsonaro. Gonet não vai mexer uma palha para anular as investigações, provas e consequências da tentativa de golpe, dos atestados falsos de vacina, das joias das Arábias e de um outro inquérito que anda meio esquecido, mas está muito ativo: o uso ilegal dos cartões corporativos da Presidência da República para gastos particulares. O executor, mais uma vez, era Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Os beneficiários, o presidente e sua mulher, Michelle Bolsonaro. O método: pagamentos em dinheiro vivo ou via cartões de créditos de amigas de Michelle, depois reembolsadas.
A pergunta que não quer calar é quem foi o interlocutor a quem Mauro Cid acusou a PF de só querer confirmar sua própria narrativa e Moraes, de “já ter a sentença pronta para prender todo mundo”. Cid, que desmaiou ao depor e ser preso novamente na sexta-feira, não entregou o nome em seu depoimento, mas negou que tenha sido pressionado a dizer e confirmar o que a polícia queria e, portanto, desdisse tudo o que havia dito no áudio.
Com Cid preso, há uma espécie de bolão sobre qual é a real trama dos áudios para virarem uma nova “Vaza Jato”. Mauro Cid participou de um conluio pró-Bolsonaro para derrubar sua delação premiada e desacreditar as investigações? Ou, ao contrário, caiu numa armadilha bolsonarista e fez o “desabafo” sem saber que estava sendo gravado? Antes de qualquer conclusão ou certeza, a tese mais forte é de que ele caiu numa armadilha, pelo motivo, puro e simples, de que ele é o grande e único a perder, e a perder muito, com os áudios. Voltou a ser preso, está para ficar sem todos os benefícios da delação, é sujeito a dezenas de anos de prisão e, acima de tudo, arrasta sua mulher e o próprio pai, general Mauro César Cid, para o buraco. Lembram da foto do general participando do contrabando de joias para vender nos EUA?
Por enquanto, a suposição dos investigadores é que, depois de meses convivendo sem reação à montanha de falas, dados, informações e provas, Bolsonaro e seus assessores articularam um contra-ataque, que começa com os áudios de Mauro Cid denunciando vícios e pressões no processo e teria um novo grande momento com o depoimento do almirante Almir Garnier, o único dos três comandantes militares a compactuar com o golpe de Estado e, agora, também o único a ser investigado. Cid desmentindo o que delatara, Garnier tentando demolir as versões tanto de Cid quanto do general Freire Gomes e do brigadeiro Carlos Baptista Jr. Ou seja: o objetivo seria confundir tudo, jogar a sociedade contra a PF e o Supremo – como já tentam desde o início – e virar o jogo, como ocorreu no pós-Lava Jato. Moraes viraria vilão e Bolsonaro, a vítima. Querer, eles até querem, mas cola? A PF não é boba e não vai querer um “novo depoimento” de Garnier, que teve a chance da falar e se calou no primeiro.
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Se os benefícios de Cid, o filho, estão virtualmente cancelados, há dúvidas sobre o destino da sua delação, inclusive porque Bolsonaro e os investigados tentarão anular o que ele disse, sob alegação de que a delação foi obtida sob pressão, constrangimento, blábláblá. Isso, porém, não preocupa a PF nem Moraes, que têm montes de provas concretas em todos os inquéritos envolvendo Bolsonaro e Cid, inclusive no principal, sobre o golpe. Os responsáveis pelas investigações, inclusive, estão convencidos de que Cid não contou tudo o que sabe, tentando se limitar a confirmar o que eles já sabiam, principalmente, pela quebra de sigilo de seus celulares. Foi neles, por exemplo, que foi encontrada uma das minutas de golpe. No telefone do ajudante de ordens do então presidente?!
Por fim, os áudios de Mauro Cid revelam mágoa e irritação com os velhos companheiros de governo, em especial com o ex-chefe, a quem serviu com uma vassalagem e uma imprudência jamais vistas. Daí a sua lembrança: enquanto ele, Cid, perdeu tudo, a carreira, a liberdade e jogou a família no meio, Bolsonaro se deu bem. Cid está num inferno, descartado por Moraes, pela PF e por Bolsonaro. E, afinal, quem foi seu algoz, que fez dele gato e sapato em todos esses crimes? O cara do “Pix de milhões”.
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