Os 200 marinheiros que desembarcaram da fragata Independência no sábado, dia 26, encerraram a participação do Brasil na Unifil, a força de paz marítima das Nações Unidas, concluindo um ciclo iniciado em 1994 que levou 46,9 mil homens a regiões de conflitos em quatro continentes. Com isso, o País fica, pela primeira vez em 21 anos, sem contingentes em missões de paz da ONU.
Segundo especialistas, perde-se um meio de projeção internacional e sinaliza-se desinteresse por parte de uma Nação que já teve protagonismo no cenário internacional – inclusive liderando ações como a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), chefiada pelo Brasil durante 13 anos.
“Nossa presença em operações de paz era virtuosa, boa para o mundo, boa para nós, para nossas Forças Armadas, que eram treinadas em causas úteis e tinham aprendizado intenso”, avalia Marcos Azambuja, que foi embaixador do Brasil na Argentina, na França e secretário-geral do Itamaraty. “O Haiti deve bastante a nós, mas nós devemos um pouco ao Haiti, ao Congo, à Bósnia, ao Timor Leste e onde mais fomos”, afirmou o diplomata, exaltando as lições de democracia, direitos humanos e respeito ao direito internacional obtidas com as missões.
Para Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, a saída representa um recuo do papel “tradicional e válido” que o País desempenha no plano multilateral. “A participação em missões de paz é uma combinação do soft power (poder brando) da presença com essa dimensão do papel das Forças Armadas que, sem entrar em conflito, contribuem para a manutenção da paz”, avalia o ex-chanceler. “É um custo que vem junto com as aspirações de uma presença maior do Brasil no plano internacional”.
Ao atuar com as missões de paz, as Nações Unidas visam cumprir uma de suas funções: a da preservação da paz como ausência de guerra e conflitos. Para isso, recebe tropas cedidas por seus 194 Estados-membros e trabalha como um “terceiro” elemento entre as partes conflitantes. A Primeira Força de Emergência das Nações Unidas, a UNEF I, teve participação brasileira para mediar a crise no Canal de Suez entre Egito e Israel em 1956.
“Essa participação era uma expressão não só do reconhecimento do Brasil, mas do prestígio brasileiro no plano internacional”, explica Lafer. Cerca de 6.300 brasileiros foram destacados durante os 10 anos da missão.
Depois, o Brasil participaria com tropa ainda de missões em regiões tão distintas e distantes quanto Angola, Timor Leste, Haiti, Moçambique e Líbano. “O poder político teve consciência de que tinha de se investir para ter uma representação boa no exterior. A cultura de preparação, que já existia, ficou muito reforçada com essas participações”, avalia o general Carlos Alberto Santos Cruz, que foi comandante da força de paz Monusco, no Congo, uma das maiores e mais importantes missões da ONU. “Todos tiveram suas especializações reforçadas - essa foi a marca registrada dessas ações”. Ao todo, Santos Cruz liderou 22 mil capacetes azuis entre 2013 e 2015 no centro da África.
“Acredito que sair debilita ainda mais a nossa posição no plano internacional que é uma posição já de marginalização, de descrédito, de perda de respeito”, afirma Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos EUA, China e Alemanha. “É mais um gesto para trás, mais um movimento de recuo e de retração em relação à comunidade internacional. O Brasil vai abdicando de suas responsabilidades e atacando a ONU e o multilateralismo como coisas adversárias aos nossos interesses”, afirma.
'Parceiro viável' em retração
Ex-diretor político do secretário-geral da ONU Kofi Annan, Carlos Lopes afirma que essas participações conferiram ao Brasil o status de um parceiro viável do sistema internacional e mais força entre os países do sul. “Sair das tropas de paz sem dúvida enfraquece a projeção internacional do Brasil e diminui consideravelmente a boa vontade em relação ao País”, avalia Lopes, que foi representante da ONU no Brasil.
“É uma demonstração de desinteresse depois de o Brasil ser tão presente. Seria uma retração menos visível se o Brasil não fosse um agente tão protagonista”.
Ele afirma que desde a chegada de Dilma Rousseff ao poder, em 2011, houve uma retração das políticas e do Brasil no cenário internacional. “Estamos assistindo a uma contração da presença brasileira nos fóruns multilaterais que agora atingiu um clímax com o presidente Bolsonaro. Há um desinteresse pelas questões dos países do sul, pela África, pelo Haiti e um desinteresse generalizado pelas questões de manutenção da paz. O Brasil se retirou de tudo isso”.
Defesa
Ao Estadão, o porta voz do Ministério da Defesa, vice-almirante Carlos Chagas, informou que a decisão de deixar de manter contingente na Unifil foi tomada pela Marinha em razão da necessidade de concentrar seus recursos e ampliar sua presença no Atlântico Sul em razão da proteção da chamada “Amazônia Azul” e em razão dos riscos representados pela pirataria no golfo da Guiné, região de nosso entorno estratégico, ao contrário do Líbano.
Sobre o fato de o País não ter contribuído com tropas para a missão na República Centro-Africana, o almirante afirmou que a Defesa foi favorável à missão, mas a oposição veio do Itamaraty ainda em 2018, no governo de Michel Temer.
De acordo com ele, a decisão não representa nenhum distanciamento do sistema de forças de paz da ONU, com o qual o país permanece comprometido por meio da presença de oficiais brasileiros em missões individuais como observadores militares em missões (Saara Ocidental, Chipre, Sudão do Sul e República Centro-Africana), como integrantes do Estado-Maior (Líbano e República Centro-Africana) e como especialistas, como o grupo do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), que atualmente treina militares da República Democrática do Congo.
O almirante afirmou ainda que o País deve aumentar seu grau de certificação de preparo e prontidão para missões das Nações Unidas. O Estadão procurou o Itamaraty, mas o ministério não se manifestou sobre o caso.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.