A tensão entre Executivo e Legislativo, após o veto presidencial de R$ 5,6 bilhões em emendas parlamentares no início de 2024, representa mais um episódio do contínuo embate entre os dois Poderes pela hegemonia no controle do Orçamento.
A disputa não é recente e remonta a períodos anteriores marcados por crises políticas e manobras regimentais que propiciaram não apenas a ampliação das prerrogativas dos congressistas na definição dos gastos, mas também levaram a um elevado nível de distribuição de recursos, que por vezes carecem de transparência, resultando em casos de corrupção e distorções na indicação do destino do dinheiro público.
O conflito entre Executivo e Legislativo tem como ponto de partida a rigidez do Orçamento, no qual cerca de 93% das despesas são classificadas como obrigatórias (aposentadorias, salários, etc), restando apenas 7% de recursos livres para escolha de como gastar. É dessa pequena fatia que saem os valores para custear as emendas parlamentares – instrumento legal pelo qual deputados e senadores direcionam recursos orçamentários para suas bases eleitorais.
Na prática, as emendas parlamentares e a definição dos ministérios do governo para gastos disputam a prioridade de execução em um cenário orçamentário restrito. Até 2014, entretanto, o governo federal tinha uma ampla liberdade para escolher para onde o dinheiro deveria ir e ainda gozava de autonomia para não executar as emendas, mesmo aquelas já aprovadas. Em reação, os congressistas promoveram uma série de mudanças legislativas para garantir que essas programações orçamentárias fossem efetivamente pagas.
Mudanças legislativas e o alto volume das Emendas Individuais
Liderado pelo Centrão, o processo de redesenho orçamentário foi consolidado em 2015, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, articulou a aprovação da Emenda Constitucional nº 86. A partir dali, o governo passou a ser obrigado a destinar os recursos das emendas individuais dos parlamentares conforme indicado por eles. A emenda também estabeleceu que 1,2% de toda a receita corrente líquida do governo fosse destinada à indicação dos congressistas – com a PEC da Transição, de 2022, o montante foi ampliado para 2%.
As mudanças nas leis orçamentárias provocaram um aumento significativo no número das emendas individuais, resultando em pagamentos recordes de cerca de R$ 22 bilhões em 2023, ante R$ 3,7 bilhões em 2015.
Na avaliação do economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper, o elevado volume de recursos dificulta a realização de uma fiscalização adequada por parte dos órgãos de controle. “Em nenhum lugar no mundo tem uma quantidade de emendas tão grande como no Brasil, isso dá margem para a corrupção. Com esse alto volume não dá para saber onde está sendo gasto.”
Descaracterização das emendas apresentadas por bancadas parlamentares
Em 2019, o Centrão reforçou sua influência sobre o Orçamento com a aprovação da Emenda Constitucional nº 100, que ampliou o orçamento impositivo, tornando obrigatório também o pagamento das emendas de bancada, aquelas de autoria coletiva e que reúnem os parlamentares do mesmo Estado ou do Distrito Federal, mesmo que sejam filiados a partidos diferentes.
Apesar da natureza coletiva, as emendas de bancada acabaram descaracterizadas, assumindo por vezes a lógica particularista das emendas individuais. Não por acaso, em 2023, um estudo realizado pelos consultores do Orçamento da Câmara dos Deputados revelou que apenas 10% das transferências feitas por meio desse tipo de emenda eram direcionadas a obras e serviços voltados para infraestrutura e setores relevantes, que deveriam ser o principal foco da modalidade.
A depender do tamanho da bancada, surgem também os chamados “rachadão” e “rachadinha”. O primeiro é uma prática na qual os congressistas distribuem informalmente entre si o total de emendas disponíveis na bancada, ocorrendo especialmente nos Estados que possuem um número maior de emendas do que o total de parlamentares. Em outras palavras, cada deputado ou senador pode patrocinar pelo menos uma emenda dentro de uma lógica semelhante à da emenda individual, ampliando o direcionamento de recursos para suas bases eleitorais.
No segundo, os parlamentares utilizam uma única emenda de bancada para contemplar diferentes obras ou transferir recursos para mais de um município. Ao contrário do “rachadão”, a “rachadinha” ocorre em bancadas estaduais maiores, onde há mais parlamentares do que emendas disponíveis.
As emendas de bancada também experimentaram um aumento nos recursos pagos. Em 2017, o montante pago era de 1,1 bilhão. No último ano, por sua vez, esse valor aumentou significativamente, atingindo cerca de R$ 6,6 bilhões.
Emenda Pix, orçamento secreto e a falta de transparência
Também no ano de 2019, o Congresso implementou novos mecanismos para ampliar suas prerrogativas em matéria orçamentária através da Emenda Constitucional nº 105, que instituiu a modalidade da emenda Pix, caso revelado pelo Estadão. A inovação orçamentária permitiu aos parlamentares transferir dinheiro federal diretamente para Estados ou municípios, sem vinculação a nenhum projeto específico de política pública e antes mesmo de qualquer obra ou serviço ser entregue, ou seja, não se sabe com o que os recursos foram efetivamente gastos.
A modalidade de emenda, que em 2023 destinou R$ 8,9 bilhões, é alvo de críticas justamente devido à falta de transparência no momento da prestação de contas. ”Essas transferências são pouco passíveis de controle efetivo, o que é bastante ruim do ponto de vista do próprio processo democrático”, diz Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo.
Considerado o ápice da reconfiguração orçamentária, o final do primeiro ano do governo Bolsonaro também ficou marcado pelo estabelecimento das emendas que tinham o código “RP-9″, conhecido como Orçamento Secreto, caso também revelado pelo Estadão. Embora essa modalidade de emenda já existisse no Congresso, foi necessário aprovar outras leis para permitir ao relator-geral do Orçamento manejar elevados volumes de recursos.
No Orçamento Secreto, o relator, após ter os seus poderes ampliados, passou a liberar valores do Orçamento a pedido de deputados e senadores, especialmente para aqueles da base aliada do governo. Nos registros do Congresso, não constavam a identificação dos parlamentares beneficiados, apenas o nome do relator. Ou seja, os órgãos de controle podiam verificar quem indicou a verba.
É justamente, a partir da vigência do Orçamento Secreto que as emendas pagas atingiram os maiores patamares. Durante esse período, o Planalto destinou bilhões de reais para essas emendas de relator, o que foi interpretado como uma forma de fazer barganha política com o Legislativo.
Para o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Bertholini, todas essas alterações de 2019 foram viabilizadas devido à renúncia do governo Bolsonaro em relação às prerrogativas orçamentárias, terceirizando o direcionamento de recursos para o Congresso, o que culminou em uma maior influência dos parlamentares sobre o Orçamento. “A crise entre Executivo e Legislativo se aprofundou com Bolsonaro, que delegou a atribuição de gerenciar o orçamento para a coalizão de (Arthur) Lira e para o Centrão.”
No final de 2022, o Orçamento Secreto foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) devido à falta de transparência na indicação de seus beneficiários. Mesmo com o fim do mecanismo, o governo Lula pagou R$ 34,5 bilhões em emendas no primeiro ano de governo, em 2023.
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A decisão do STF pela inconstitucionalidade do mecanismo, segundo Bertholini, não sinaliza o término do avanço das prerrogativas orçamentárias do Centrão. “Essas conquistas são difíceis de serem retiradas.”
Emendas de Comissão e a reprodução do sistema do orçamento secreto
Não é à toa que o Centrão turbinou, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, as emendas de comissão, aquelas que os recursos são indicados pelas comissões permanentes da Câmara e do Senado. No fim do ano passado, foram aprovados R$ 16,7 bilhões para este tipo de emenda. O movimento é visto como uma tentativa de reproduzir o sistema do orçamento secreto.
A operação segue o mesmo modelo: os nomes dos parlamentares que fazem as indicações são omitidos – tudo o que aparece é o nome do colegiado, e não do parlamentar que patrocinou o envio dos recursos, numa situação similar à do orçamento secreto. Agora, porém, o procedimento será centralizado nas comissões, por meio dos presidentes de cada colegiado, e não mais no relator-geral do Orçamento.
“Essas emendas têm ganhado grande espaço no Orçamento, o que representa um retrocesso, pois têm menos transparência e rastreabilidade. São neste tipo de emenda que há mais risco de corrupção”, analisa o cientista político Lucio Rennó, pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP) e especializado em comportamento legislativo.
Conforme o Estadão revelou, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), quer emplacar emendas do orçamento secreto com o carimbo da Mesa Diretora da Casa, uma das comissões do Congresso.
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