Empresa de obra em presídio está por trás de esquema suspeito de fraude bilionária em Brasília

Grupo atua em conjunto usando outros laranjas e firmas de fachada para conseguir contratos com o governo e outros órgãos públicos que já somam R$ 1,5 bilhão desde 2021; CGU abriu uma investigação sigilosa a partir das informações indicadas pela reportagem; principal empresa citada afirma ter ‘histórico inquestionável de excelência na prestação de seus serviços’

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Atualização:

BRASÍLIA - Um esquema bilionário de terceirização envolvendo o uso de laranjas, empresas de fachada e suspeitas de fraude em licitações está por trás de contratos sensíveis nos principais órgãos públicos do País. Ligado a um ex-deputado distrital, o grupo é formado por pelo menos 11 empresas. No papel, as companhias estão em nome de pessoas que ganham benefícios sociais do governo e não sabem dar detalhes sobre os negócios. Na prática, elas concorrem nas mesmas licitações, simulam negócios entre si para inflar balanços e ganham contratos até em presídios de segurança máxima.

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No mês passado, o Estadão revelou que uma dessas empresas, a R7 Facilities, é responsável por obras de manutenção na Penitenciária Federal de Mossoró, onde duas pessoas ligadas ao Comando Vermelho (CV) fugiram no último dia 14. Na Receita Federal, a R7 está em nome do técnico em contabilidade Gildenilson Braz Torres. Ele foi beneficiário do auxílio emergencial, mora em uma pequena casa na periferia do Distrito Federal e tinha em suas contas R$ 523, segundo uma ação de execução fiscal de 2022.

Em nota, a R7 Facilities informou que tem um “histórico inquestionável de excelência na prestação de seus serviços”, mas não explicou supostos serviços com empresas que não existem. Destacou, porém, que seus contratos “são conquistados por meio de rigorosos processos de licitação e acompanhados sistematicamente tanto por gestores públicos quanto por órgãos de fiscalização e controle”. Os donos das outras firmas não souberam dar explicações ou se negaram a comentar (leia mais abaixo).

Prédio onde funciona a R7 Facilities, na região do SIA, no Distrito Federal Foto: Wilton Junior/Estadão

Agora, a investigação do Estadão se aprofunda nas relações da R7 no mercado, encontra vínculos dela com outras firmas e aponta indícios de fraudes na operação de um conjunto de empresas. Nesta sexta-feira, 1º, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República informou que a Controladoria-Geral da União (CGU) abriu uma investigação sigilosa a partir das informações indicadas pela reportagem.

Das 11 empresas do grupo, seis têm se destacado nas licitações com o poder público. O grupo soma R$ 1,5 bilhão em contratos com governo federal, Câmara, Senado e Supremo Tribunal Federal (STF) só a partir de fevereiro de 2021, quando a R7 passou para as mãos de laranjas. Do montante, R$ 683,2 milhões foram assinados ou renovados em 2023 e 2024, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Gestores consultados estimam que o grupo seja responsável por cerca de 10 mil funcionários terceirizados que atuam no poder público em Brasília, e que uma eventual retirada sumária de todos eles teria efeito de inviabilizar setores da burocracia federal. São funções como as de porteiro, motorista, pedreiro, copeiro e auxiliar administrativo. Entre os principais contratantes estão os ministérios da Fazenda, da Infraestrutura, da Agricultura, do Meio Ambiente e da Justiça.

O Estadão mapeou a relação das empresas ao analisar centenas de licitações, milhares de páginas de processos judiciais, balanços contábeis, publicações em redes sociais, mensagens privadas e documentos da Junta Comercial. Também serviram para montar os elos da rede as contradições apresentadas em entrevistas com os supostos donos, conversas com agentes do mercado e o não funcionamento de empresas nos endereços informados ao Fisco.

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O desenho do esquema aponta sempre para os mesmos articuladores: o ex-policial civil Carlos Tabanez e o empresário Edison Júnior, o Edinho. Tabanez foi deputado suplente na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) em 2022 e é dono de um dos principais clubes de tiro de Brasília. Já Edinho é figura conhecida no mercado de terceirização, foi dono de uma empresa do ramo que faliu e é associado ao clube de tiro de Tabanez. Sempre aparecem também dois advogados que gozam da confiança do policial.

Ex-deputado Carlos Tabanez é dono de um dos principais clubes de tiro de Brasília e dono de um arsenal avaliado em mais de R$ 120 mil Foto: @tabanezdf via Instagram

Em uma mensagem de fim de ano enviada a um ex-colaborador, Tabanez se apresenta como “fundador” da R7. Ele também faz palestras em nome de uma outra empresa do grupo e é chamado de “chefe” por um funcionário de uma terceira companhia. No papel, ele não é dono de nenhuma dessas três, mas elas chegam a participar das mesmas licitações. Ele admite “indicar funcionários” para elas.

Além das seis empresas com contratos milionários, outras cinco firmas mapeadas aparecem em balanços da R7 como companhias que a teriam contratado para serviços particulares. Duas delas teriam contratado a R7 para serviços de “manutenção e reforma” por R$ 40,6 milhões. Entretanto, ambas não funcionam nos endereços que declaram à Receita.

Uma delas é a G&G Empreendimentos, que está em nome de Eliseuma Costa Alves, a Elis, uma ex-secretária de outra empresa do grupo, a B2B. A reportagem encontrou a suposta administradora da companhia milionária em uma clínica de estética em Taguatinga, cidade a 23 km de Brasília. Ela afirmou ser dona somente da clínica e disse desconhecer a G&G e a R7. O contador da clínica de Elis é Gildenilson Torres, laranja que aparece na papelada como dono da R7.

Endereço informado em documentos oficiais por Gildenilson Braz Torres (foto), no Riacho Fundo, periferia de Brasília; casa está à venda e tem o número do celular dele para contato Foto: Vinícius Valfré/Estadão

No endereço da G&G, em um prédio de escritórios na área central de Brasília, outro personagem central veio à tona. Em vez da empresa em nome de Eliseuma, funciona no espaço a Siello Tecnologia, empresa do advogado Alair Ferraz, representante de Tabanez e de Edinho em processos judiciais. A funcionária que recebeu a reportagem no local disse desconhecer a G&G e apontou a sala da empresa como, na verdade, pertencente à Siello.

A empresa que eu tenho no meu nome é essa, a Livraderme (...) gente, só diante do advogado que eu respondo. Eu não chamei vocês”

Eliseuma Alves; no papel, dona da G&G, empresa com a qual a R7 diz ter contrato milionário

Além de advogado de Tabanez e Edinho, Alair Ferraz também aparece como procurador das demais empresas do grupo – que, em tese, seriam concorrentes. O vínculo dele com Carlos Tabanez, porém, não é somente técnico. O advogado é do círculo de confiança do policial aposentado e foi um dos principais doadores da campanha eleitoral de Tabanez à Câmara Legislativa do Distrito Federal em 2022. Ferraz não fez doação para nenhum outro candidato naquela disputa. Tabanez se refere ao advogado como seu “venerável mestre” da loja maçônica que frequenta.

Carlos Tabanez ficou na terceira suplência na eleição de 2018, mas chegou a assumir o mandato por algumas semanas. Bolsonarista e dono de um dos maiores clubes de tiro de Brasília, ele tem um arsenal avaliado em R$ 128,5 mil, entre pistolas, revólveres e fuzis. Seu patrimônio declarado na campanha de 2018 era de R$ 1,06 milhão. Quatro anos depois, informou R$ 12,4 milhões em bens, um crescimento de 1.066%.

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O policial e ex-deputado também foi dono da Defender, outra empresa de terceirização de mão de obra do grupo. Recentemente, a empresa foi repassada para Luiz Carlos da Silva Batista. O jovem de 28 anos vive na periferia de Brasília, não soube dar explicações sobre o funcionamento da firma e se negou a explicar como virou o dono do negócio que firmou, a partir de 2021, R$ 338 milhões em contratos com o governo federal.

Rua onde vive suposto dono da Defender, empresa com contratos milionários com o governo, no Riacho Fundo, periferia de Brasília; Luiz Carlos (destaque) não quis dar informações sobre como teria comprado a companhia Foto: Vinícius Valfré/Estadão

É recorrente a participação de empresas do grupo, como Defender e R7, nas mesmas licitações. O Portal da Transparência registra pelo menos 15 casos. Segundo especialistas, o cenário pode apontar para crimes como conluio, falsidade ideológica, fraude em licitação e até associação criminosa.

Meio complicado isso, né?! É porque a Defender ela é minha, né, só que eu só... no caso, tipo... Cara, na verdade, eu não posso nem falar isso com vocês. Essa que é a verdade. O negócio é muito sério”

Luiz Carlos da Silva Batista, 28 anos; no papel, dono da empresa com contratos milionários com o governo

Luiz foi localizado em casa no Riacho Fundo, numa quinta-feira à tarde. Ele disse que era seu dia de “folga”. Questionado sobre como comprou a empresa que foi de Tabanez, irritou-se, negou ser laranja e afirmou que iria falar com seus advogados. Por fim, pediu para que os repórteres se retirassem.

Outra empresa do grupo é a B2B, registrada em nome de Robério Dantas, um ex-beneficiário do auxílio emergencial que se recusou a dar informações sobre a empresa. A firma aparece nos balanços da R7 como contratante de um serviço de “manutenção” por R$ 37 milhões. Nas redes sociais, Tabanez é citado como “chefe” por funcionários da empresa. Edinho é um ex-dono da empresa e se apresentava como representante dela mesmo depois de deixar formalmente o negócio.

As empresas B2B, AC Segurança e Falcon têm o mesmo endereço; no local, porém, funcionários disseram desconhecer o que seria a Falcon, empresa que tem contratos milionários com a R7 Foto: Vinícius Valfré/Estadão

A B2B funciona no mesmo endereço de outras duas empresas do grupo, a AC Segurança, que possui R$ 41 milhões em contratos com o governo, e a Falcon. Ambas pertencem, no papel, a Nathan Andrade, o Nanau, um apoiador de Tabanez nas eleições de 2022. A reportagem procurou pelo suposto dono no endereço dele e por telefone. Após as tentativas de pedidos de entrevista, ele bloqueou a reportagem. Essas três empresas também têm Alair Ferraz como advogado em processos judiciais.

Do conjunto de seis empresas, a mais bem sucedida em assinatura de contratos com o governo federal é a R7 Facilities, com contratos que somam R$ 1,06 bilhão desde fevereiro de 2021, quando passou para os nomes de “laranjas”. Em seguida vem a Defender (R$ 338,3 milhões); a AC Segurança (R$ 41,4 milhões); a K2 Conservação (R$ 15,2 milhões); a GSI Serviços (14,6 milhões); e a GSI Gestão de Segurança (R$ 6,5 milhões).

O que dizem os demais citados?

Na semana passada, o policial e ex-deputado, Carlos Tabanez, havia afirmado não ter relação com a R7. Procurado novamente para comentar a mensagem na qual se apresenta como “fundador” da empresa, ele não quis comentar.

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Alair Ferraz afirmou que somente atua como advogado de Tabanez, Edinho e de vários outros clientes em processos específicos, em geral trabalhistas. E disse desconhecer o fato de o endereço da G&G ser o mesmo de uma das empresas dele.

A reportagem pediu para que ele se manifestasse em nome das empresas para as quais advogada ou indicasse os caminhos para que os responsáveis pudessem responder. Ele disse que as questões deveriam ser remetidas às empresas.

No mês passado, Alair Ferraz respondeu em nome da R7. Ele disse que apenas encaminhou o documento por mensagem com a manifestação oficial. Entretanto, o nome dele aparece nos metadados – informações sobre a criação do arquivo no computador.

Agora, a R7 contratou uma assessoria de imprensa profissional. “Em função de práticas de compliance, integridade e estratégia institucional, a R7 Facilities se reserva o direito de não fazer comentários sobre o setor privado, nem sobre seus contratos nem sobre empresas parceiras”, disse, em nota.

Edison Junior, o Edinho, não atendeu às chamadas da reportagem e bloqueou os contatos no aplicativo de conversa.

Robério Dantas pediu para ser procurado no dia seguinte e deixou de atender as chamadas. Nathan Almeida também se recusou a retornar os contatos. A reportagem esteve no endereço dele duas vezes, mas ele não estava em casa.

Eliseuma Alves disse que, sobre a G&G, a reportagem deveria procurar o advogado da empresa, Amom Figueiredo. Ele, porém, é diretor da R7, o que sugere mais uma ligação entre empresas do grupo. Procurado, ele também não se manifestou.

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A empresa é contratada pela Câmara para serviços de manutenção preventiva e jardinagem, por cerca de R$ 3 milhões. No Senado, são quatro contratos ativos que somam aproximadamente R$ 38 milhões, para serviços de manutenção, ascensoristas e apoio administrativo. No STF, o contrato em vigor desde janeiro no valor de R$ 18,1 milhões é para técnico de secretariado.

A Câmara informou que a contratação da R7 se deu “sem nenhuma intercorrência”. O Senado pontuou que celebrou contrato com a companhia após processo que tramitou “sem nenhuma intercorrência”. O Supremo Tribunal Federal destacou que a R7 “juntou todas as documentações legalmente necessárias e apresentou todas as comprovações solicitadas”.

Entenda a relação entre as empresas

1. R7 Facilities

  • Sócio-administrador no papel é Gildenilson Braz Torres, um técnico de contabilidade que recebeu auxílio emergencial, mora em uma casa simples na periferia do DF e tinha R$ 523 em suas contas em 2022
  • Alair Ferraz é advogado da empresa
  • Tabanez envia panetones e indica funcionários para a R7
  • Tabanez já se apresentou como fundador da R7 Facilities, em mensagem enviada a um funcionário e obtida pelo Estadão

2. B2B Serviços de Administração

  • Sócio no papel é Robério Dantas, que foi beneficiário do auxílio emergencial
  • Edison Júnior, o Edinho, é ex-dono da B2B
  • Funcionário da B2B chama Tabanez de chefe nas redes sociais
  • Tem contrato de R$ 37 milhões com a R7 Facilities
  • E-mail do Gildenilson, dono da R7 no papel, é ligado à B2B, segundo processo na Justiça
  • Tem o mesmo contador que a R7
  • Alair Ferraz é advogado da B2B

3. Defender

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  • Tinha como dono o próprio Tabanez, que alegou ter vendido a empresa, mas confessou que segue indicando os funcionários
  • Atual sócio, no papel, é Luiz Carlos, um jovem de 28 anos que mora em uma casa simples na periferia do DF e não soube dar explicações sobre a empresa
  • Apesar de supostamente ter saído da Defender, Tabanez dá palestra em nome da empresa e envia panetones para os funcionários
  • Alair Ferraz é advogado da empresa

4. AC Segurança

  • Dono, no papel, é Nathan Almeida Andrade, o Nanau, que fez campanha em 2022 para Tabanez em suas redes sociais
  • Alair Ferraz é advogado da empresa
  • AC Segurança funciona no mesmo endereço da B2B

5. Falcon Facilities

  • Dono, no papel, é Nathan Almeida Andrade, o Nanau, que fez campanha em 2022 para Tabanez em suas redes sociais
  • Alair Ferraz é advogado da empresa
  • Segundo dados informados à Receita Federal, Falcon funciona no mesmo endereço da B2B e da AC Segurança, mas funcionários negam a existência da empresa no local
  • Tem um contrato com a R7 Facilities de R$ 13,8 milhões, apesar de a empresa não funcionar no endereço que informou à Receita

6. Siello Tecnologia, Desenvolvimento e Serviços

  • Alair Ferraz é o dono, segundo dados da Receita Federal
  • Funciona no mesmo endereço da G&G Empreendimentos Imobiliários

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7. G&G Empreendimentos Imobiliários

  • Pertence, no papel, a Eliseuma Costa Alves. Em seu Linkedin, ela se apresentava como secretária da B2B
  • Hoje Eliseuma é dona de uma clínica de estética. Ela não soube dar informações sobre a G&G e indicou o advogado Amom como responsável. Amom é diretor da R7 Facilities e parceiro de Tabanez
  • A G&G funciona em uma sala ao lado da Siello, empresa de Alair
  • Tem contrato com a R7 Facilities de R$ 26,8 milhões, apesar de Eliseuma desconhecer a informação

8. K2 Conservação e Serviços Gerais

  • Alair Ferraz é advogado da empresa
  • Nas redes sociais, Alair aparece em confraternização de fim de ano da empresa, à frente das apresentações e distribuindo brindes para os funcionários

9. GSI Vigilância

  • Empresa está em nome de Andrea do Carmo Souza Mendonça Gomes
  • Foi fundada por Tabanez, que ainda dá palestra em nome da empresa

10. GSI Serviços

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  • Pertence a Kelly Fragoso, esposa de Tabanez
  • Alair Ferraz é advogado da empresa

11. Qualifoco

  • Tem contrato com a R7 de R$ 32,2 milhões
  • Alair Ferraz é advogado da empresa
  • Já pertenceu a Wesley Camilo, segundo o próprio. O bombeiro civil foi o primeiro laranja da R7 Facilities, em 2021

Cinco dias após a publicação da reportagem, o ex-policial Carlos Tabanez informou, por meio da assessoria de imprensa, que “não possui laranjas”, não tem relações com os proprietários das empresas e que “ratifica o não envolvimento com as supostas irregularidades relacionadas ao seu nome”.

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