Esquema dos Poços: Empresa vence licitação milionária em pregão encerrado em 10 minutos

Em todo o ano passado, Dnocs do Piauí comprou só ração para peixe; em dezembro, abriu sua maior licitação para poços

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Atualização:

BRASÍLIA — Nos últimos quatro anos, o governo federal empenhou mais de R$ 260 milhões para uma única empresa abrir poços no Nordeste. A Agromáquinas Empreendimentos Agrícolas, sediada no interior da Bahia, venceu as licitações mais valiosas da Codevasf. A firma, com sede na cidade de Brumado (BA), é dirigida por Erivaldo Alves de Moura.

Um dos pregões vencidos pela empresa foi encerrado em dez minutos. Apenas duas firmas participaram e a Agromáquinas levou 12 lotes no valor de R$ 53 milhões. A outra concorrente é especializada em 65 tipos de serviços, de perfuração de poços a lavanderia, passando por chaveiro, bufê, armarinho e controle de pragas urbanas. Dos R$ 260 milhões reservados para a Agromáquinas, R$ 81,9 milhões foram captados via orçamento secreto. O mecanismo de captação de apoio no Congresso, pelo governo Jair Bolsonaro (PL), foi revelado pelo Estadão.

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Maria de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos, moradora de Oeiras (PI). Foto: Wilton Júnior/Estadão

Em 2019, o então vereador José Batista da Gama (PDT) propôs conceder título de cidadão petrolinense ao dono da Agromáquinas. Na homenagem da Câmara Municipal, Zé Batista justificou a “nobre honraria” pelos “relevantes serviços prestados à cidade, a Pernambuco e ao Nordeste”. O político é aliado do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Gama foi secretário de Desenvolvimento Econômico e Agrário na gestão de Miguel Coelho, filho do parlamentar, na prefeitura de Petrolina.

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Em nota, o empresário afirmou que “a Agromáquinas é uma empresa com quase 20 anos de atuação e participa de licitações na Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e no Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) há aproximadamente dez anos, tendo celebrado contratos nas gestões dos presidentes Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro”.

“Não possuo qualquer interlocução com o senador Fernando Bezerra ou outro parlamentar, uma vez que as tratativas são sempre mantidas diretamente com os gestores públicos da Codevasf, do Dnocs ou qualquer outro contratante, seja público ou privado”, disse.

A Agromáquinas participa de licitações na Codevasf e no Dnocs há dez anos. Não possuo qualquer interlocução com parlamentares.”

Erivaldo Alves de Moura, empresário

No Piauí, o Dnocs passou o ano passado quase inteiro só comprando ração para peixe. Em dezembro, porém, promoveu licitações no valor de R$ 28 milhões para furar e equipar poços de água no Estado. Num dos pregões, a Engipec precisava demonstrar a experiência de perfuração de 500 poços. Comprovou apenas 77, sendo a maior parte feita no início de 2000. Mesmo assim, acabou levando o contrato de R$ 12 milhões.

O Dnocs no Piauí é comandado por Arão Lobão, amigo do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, homem forte do governo Bolsonaro. O preenchimento de vagas no governo e a distribuição de recursos passam pela sua mesa. Lobão assumiu em setembro do ano passado e logo promoveu as licitações dos poços num total de R$ 28 milhões. Uma busca no site do Dnocs-Piauí mostra que é o pregão mais alto da autarquia desde 2018.

O setor técnico sugeriu a desclassificação da Engipec por “ausência de atestado de capacitação técnica e operacional em quantidade/volume suficientes” e por não apresentar o cronograma físico-financeiro da obra. A firma conseguiu o contrato após um novo parecer. O setor técnico mudou de ideia e afirmou que os 77 poços eram suficientes para demonstrar que a empresa “possui expertise e capacidade operacional para a execução dos serviços”. Adicionou que, como a empresa havia perfurado um poço de 360 metros, seria capaz de fazer um de 250 metros.

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O empresário Eduardo Veras, dono da Engipec, afirmou que “o serviço está sendo executado sem problemas algum”. Sobre a falta de comprovação técnica, ele afirmou que “isso não tem fundamento”.

O programa de abertura de poços do governo criou uma expectativa numa região marcada pelo fisiologismo, pelas atuações eleitoreiras dos órgãos públicos e por históricas demandas sociais.

Poço do Dnocs lacrado em Oeiras, no Piauí; obra está inacabada Foto: Wilton Júnior/Estadão

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos. Moradora da zona rural de Oeiras (PI), ela não tem água encanada em casa. Anda cerca de oito quilômetros até o rio, levando as roupas e o sabão numa bacia equilibrada na cabeça.

“No inverno, tem as brotas”, disse ela. “Brotas” são riachos sazonais que aparecem na época chuvosa e somem no período seco. Na estiagem, que no sertão piauiense vai de maio a outubro, Maria de Lourdes caminha até o Rio Croatá para lavar roupa. A água de beber vem de um poço perto da casa dela, mas a vazão não basta para lavar as roupas.

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O que diz a Codevasf

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A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) informou ontem que seus pregões são abertos à livre concorrência e à participação de empresas de todo o País. A empresa afirmou que observa a súmula 177 do TCU, “com clara definição de objeto, quantidades e Estados”.

De acordo com o órgão, “os locais beneficiados são apontados na definição do objeto, no Termo de Referência”. “A localização exata de poços ocorre após visita técnica de responsável qualificado da empresa contratada, com ratificação de equipe técnica da Codevasf.”

Ao Estadão, a companhia declarou que a escolha dos locais onde vai perfurar poços está relacionada “à necessidade hídrica, ausência de rede de abastecimento de água, origem de recursos orçamentários e atendimento à política pública de redução da dependência de carros-pipa”. A Codevasf afirmou que atende a demandas de prefeituras e associações e a indicações de órgãos responsáveis pela descentralização de recursos, quando aplicável.

O que diz o DNOCS

O DNOCS informou, em nota, que sua responsabilidade era apenas “a entrega de uma máquina perfuratriz” e cabia à Prefeitura de Oeiras, em 2020, “a execução do processo” em 2020. Naquele ano, o orçamento do órgão foi de R$ 1 bilhão. O Departamento contra a Seca declarou a apresentação “de 77 atestados comprovando o serviço de perfuração de poços pela empresa classificada em primeiro lugar é suficiente para demonstrar que esta possui expertise e capacidade operacional para a execução dos serviços”. Informou ainda que o TCU entendeu que o pregão foi regular.

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