BRASÍLIA – Em março passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou ao Congresso um projeto de lei prevendo punição com multas a empresas privadas que paguem aos homens salários maiores que às mulheres nos mesmos cargos. Aprovada pelos parlamentares em julho, a nova lei foi regulamentada em seguida por um decreto do petista. O próprio Estado brasileiro ainda não cumpre a igualdade salarial que cobra da iniciativa privada: dados de empresas estatais mostram que mulheres chegam a ganhar até 26% a menos que seus colegas homens, na média. O quadro é o mesmo na administração direta, diz especialista.
O Estadão analisou dados de seis empresas estatais: a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), a Nav Brasil, a Companhia das Docas do Ceará (CDC) e a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp). Com exceção do Serpro e da Ceagesp, nas quais as mulheres ganham de forma equânime ou até um pouco mais, em todas as outras elas ganham menos que os homens. A menor diferença ocorre na Nav Brasil, do setor aeronáutico (8,17% a mais para os homens). A maior é na Emgepron, onde homens ganham, em média, 26,2% a mais que as mulheres.
Procuradas, as empresas estatais disseram que o ingresso nas carreiras se dá por concurso público, disputado em condições iguais por homens e mulheres, e que os mesmos cargos recebem a mesma remuneração, independentemente do gênero. A diferença se explica pelo tipo de função exercida por homens e mulheres, dizem.
O levantamento que deu origem a esta reportagem foi feito a partir de dados inéditos das folhas de pagamento das estatais, com os nomes e a remuneração detalhada de cada funcionário, obtidos pela Fiquem Sabendo (FS). A FS é uma organização sem fins lucrativos que trabalha pela transparência na máquina pública. Anteriormente, as estatais só divulgavam planilhas genéricas ou dados não detalhados. Para atribuir gênero a cada servidor a partir do nome, foi usada uma base do repositório de dados públicos Brasil.io, mantido pelo desenvolvedor Álvaro Justen.
O caso mais relevante é o da Ebserh, empresa pública ligada ao Ministério da Educação (MEC) e responsável pela gestão de dezenas de hospitais universitários em todo o País – tarefa para a qual a empresa conta com mais de 40 mil funcionários. Embora as mulheres sejam maioria (cerca de 29,5 mil), elas ganham, na média, 14% a menos que seus colegas homens. A média salarial das funcionárias da Ebserh é de R$ 7.193, enquanto a dos homens é de R$ 8.197. Neste caso, os dados são aproximados, pois há um pequeno porcentual de nomes de servidores para os quais não foi possível determinar o gênero.
Uma possível explicação é a de que eles estão mais representados entre os médicos (32% dos homens da Ebserh ocupam esse cargo, ante 17,2% das mulheres). Enquanto isso, elas ocupam com mais frequência os cargos de enfermeiro (5.824 mulheres e 1.141 homens) e de técnico (12.295 mulheres e 3.693 homens). Em janeiro de 2024, os médicos da empresa ganharam, em média, R$ 10,7 mil líquidos (com descontos). Já os enfermeiros, R$ 9.413, e os técnicos, R$ 4.817. Além disso, há uma variação dentro de cada cargo: na maioria dos postos, os homens acabaram com um salário líquido maior que as mulheres. Como as regras são as mesmas, a diferença se deve a fatores como horas extras e outras verbas eventuais.
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Em nota, a Ebserh disse que recruta seus funcionários por concurso público, com os mesmos salários para homens e mulheres – que compõem 70% da força de trabalho da empresa. “A diferença salarial não se justifica pelo gênero, mas sim pelas carreiras, com salários distintos, para as quais o ingresso se dá por concurso público”, disse a empresa. As mulheres são a maioria no cargo de técnico de enfermagem, “categoria em que há predominância considerável (82%) de mulheres. Esse cargo é de nível médio e com remuneração inferior aos de nível superior”, informou. A estatal afirmou ainda que as mulheres hoje ocupam 57% das posições de gestão na empresa.
Segundo a cientista política Michelle Fernandez, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol-UnB), o cenário dessas estatais é o mesmo da administração direta (ministérios e outros órgãos). “Duas questões são importantes para essa diferença salarial: uma tem a ver com as carreiras, o tipo de carreira que está sendo ocupado pelas mulheres; e também a questão dos cargos de liderança. Por um lado, temos homens entrando em carreiras com maiores salários. E as mulheres em carreiras com salários mais baixos. E de outro lado, tem a questão dos cargos. Homens, em geral, acessam os cargos de liderança dentro do serviço público”, afirmou.
“Não existe uma paridade entre homens e mulheres ocupando cargos de liderança nos mais diversos órgãos do serviço público”, destacou. “E, à medida que esse cargo vai subindo na hierarquia de comando, a gente vai notando que diminui a porcentagem de mulheres e aumenta a de homens. Outro detalhe é que mulheres negras são ainda mais escassas”, disse Fernandez.
Em estatal da Marinha, diferença chega a 26%
O quadro se repete em outras estatais menores. A maior diferença entre homens e mulheres está na Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais), estatal ligada à Marinha e destinada a fazer projetos de navios. Ali, as mulheres ganham, em média, 26,2% a menos que os homens: R$ 5.416,62 ante R$ 6.838,04 deles, de acordo com dados de dezembro de 2023. Os nove maiores salários brutos daquele mês eram de homens – a primeira mulher, uma engenheira eletricista, aparece na 10ª posição. No “top 50″, só há oito mulheres.
Na Nav Brasil, estatal ligada à Aeronáutica e que provê serviços de controle de voo, os homens ganham 8,17% a mais que as mulheres: elas recebem, em média, R$ 6.345,73, enquanto eles ganham R$ 6.864,21. Novamente, a diferença se deve ao topo da carreira: quanto mais alto o cargo na hierarquia, há menos mulheres. O cargo de Analista Superior IV, o mais bem remunerado, tem 20 mulheres e 48 homens, segundo dados de dezembro de 2023. Já na Companhia das Docas do Ceará, os homens ganham 10,8% a mais que elas (R$ 13,2 mil ante R$ 11,9 mil das mulheres, em média). Na lista das dez maiores remunerações, seis são homens, embora a presidente atual seja uma mulher.
Em nota, a Emgepron disse que segue as regras de concursos públicos, garantindo “oportunidades a todos os candidatos, independentemente de gênero (...). A Emgepron está comprometida em assegurar que homens e mulheres tenham livre acesso e oportunidades equitativas, por meio de uma política de inclusão, independente de gênero, raça ou orientação sexual, permitindo destaque na Empresa”. A estatal afirmou ainda que o setor em que atua inclui muitas funções ocupadas tradicionalmente por homens, como “soldadores, mecânicos e oficiais industriais”. Nav Brasil e Companhia das Docas do Ceará não responderam.
Nem todas as empresas estatais vivem a mesma situação. Na Ceagesp e no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), as mulheres chegam a ganhar até um pouco mais que os homens. Na empresa de dados, elas ganham R$ 15,6 mil líquidos, em média, ante R$ 15,5 mil para os homens. Proporcionalmente, elas estão mais representadas na carreira de analista, com melhores salários, do que nas de técnico e auxiliar. Cerca de um quarto delas tem funções de confiança na empresa, ante 18% dos homens. Os dados também sugerem que a paridade é fruto de uma mudança recente. Quando os aposentados são incluídos na análise, os homens passam a ter um rendimento médio quase R$ 5 mil maior que as mulheres.
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