O que está em jogo na regulação das redes sociais? Discussão avança no STF e está parada na Câmara

Diante de inércia do Congresso, que engavetou projeto em abril de 2023, Corte fechou o ano de 2024 julgando a possibilidade de penalização das redes sociais por conteúdos de terceiros

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Foto do author Gabriel de Sousa

BRASÍLIA - Antes do recesso do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento de duas ações que podem modificar o Marco Civil da Internet e ampliar as responsabilidades das empresas virtuais por conteúdos ilícitos publicados por usuários. O movimento ocorreu em meio à inércia do Congresso Nacional, que paralisou o “Projeto de Lei das Fake News”, que trata sobre o tema, em abril de 2023.

STF começou a julgar a responsabilidade das redes sociais por conteúdos ilícitos de terceiros no final do ano passado Foto: Dida Sampaio/Estadão

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As duas ações em julgamento no STF tratam da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil. O trecho prevê que as plataformas só podem ser responsabilizadas pelos conteúdos publicados por terceiros quando elas deixarem de cumprir uma ordem judicial específica de remoção.

No Congresso, a proposta parou de tramitar na Câmara dos Deputados após sofrer pressão de big techs e parlamentares que integram a oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O texto não busca alterar o Marco Civil e sim criar uma nova regulamentação que aumente a responsabilidade das redes sociais. A proposta também exige uma maior transparência por parte das plataformas.

O STF encerrou suas atividades em 2024 com o início do julgamento de duas ações, cujos relatores são os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux. Além dos dois magistrados, também votou o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso. O retorno da análise do tema está indefinido, já que André Mendonça pediu vista (mais tempo para análise) antes do início do recesso do Judiciário.

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Especialistas ouvidos pelo Estadão analisam que a legislação brasileira precisa ser atualizada para além do Marco Civil e apostam que o STF tomará a frente na discussão. Mesmo assim, eles observam que é necessária uma posição do Congresso para definir tópicos importantes sobre a regulação das redes sociais.

As ações de Toffoli e Fux discutem se as plataformas devem ser responsabilizadas civilmente por conteúdos ilícitos publicados de forma virtual. Neste mês. Toffoli e Fux consideraram o artigo 19 do Marco Civil inconstitucional e defendeu que a responsabilização das empresas deve ser ampliada.

Os ministros também entenderam que as plataformas deverão analisar as notificações apresentadas por usuários sobre irregularidades nos conteúdos. Dessa forma, as big techs podem ser punidas mesmo sem receber uma ordem judicial ou uma notificação extrajudicial.

Os votos dos relatores também estabelecem outros pontos:

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  • Acabar com a “imunidade” dos provedores de internet em casos de publicações de conteúdos ilícitos por parte de usuários;
  • Qualquer internauta poderá ser indenizado em casos de descumprimento das regras determinadas pelo STF;
  • A responsabilidade judicial das redes sociais por publicações irregulares vai começar a partir do momento em que elas forem notificadas pelos usuários;
  • Para Toffoli, 12 tipos de conteúdos são considerados “práticas especialmente graves” e devem ser removidos sem notificação extrajudicial. Entre eles estão: crimes contra o Estado Democrático de Direito, violação contra a mulher, racismo e veiculação de perfis falsos.

Fux defendeu que a autorregulação, por parte das redes sociais, não é suficiente para proteger direitos fundamentais no ambiente virtual. O ministro propôs que as plataformas sejam obrigadas a remover imediatamente publicações questionadas pelos usuários e, se discordarem da necessidade de remoção, que acionem a Justiça para obter autorização para disponibilizar novamente o conteúdo.

Barroso abriu divergência sobre o posicionamento das redes sociais como fiscalizadoras de casos individuais de ilicitudes. O ministro sugeriu como alternativa o “dever de cuidado”, onde as big techs devem criar mecanismos para melhorar a qualidade da informação, mas só podem ser punidas por falhas amplas.

O presidente da Corte também discordou da punição das plataformas, mesmo quando não há ordem judicial para a remoção das postagens. O magistrado defendeu que, em casos de publicações contra a honra, como injúria, calúnia ou difamação, os conteúdos devem ser apagados após uma determinação da Justiça.

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O Projeto de Lei das Fake News, por sua vez, deixou de tramitar antes de ser votado com um texto de autoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator da proposta. O parlamentar também buscou ampliar a responsabilidade dos provedores por publicações feitas por usuários, mas, de uma forma mais branda do que o proposto por Toffoli. Ao contrário do ministro, ele determinou às empresas o exercício de um “dever de cuidado”, e não uma determinação de decidir, sem uma notificação extrajudicial e sob riscos de penalização, quais são os conteúdos irregulares.

Em abril do ano passado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o projeto de lei, da forma que se apresentava, não iria “para canto nenhum” e estava “contaminado”. Em junho, ele instalou um grupo de trabalho que buscava discutir o texto e encontrar formas de destravar a proposta. Até o momento, o colegiado não emitiu pareceres sobre o tema.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

O parecer de Orlando Silva, que está parado na Câmara dos Deputados, estabelece que:

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  • As empresas precisarão trabalhar “diligentemente” para prevenir ilegalidades e se esforçar para “aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais de usuários”;
  • Responsabilização solidária das plataformas com usuários por conteúdos ilícitos que são impulsionados;
  • As empresas deverão realizar campanhas e combater a veiculação em massa de fake news e discursos de ódio;
  • As big techs serão obrigadas a produzir e divulgar relatórios semestrais de transparência, que deverão ter um acesso facilitado aos usuários;

Congresso está inerte diante de discussões do STF e da sociedade civil

Especialistas em Direito civil, digital e constitucional ouvidos pelo Estadão afirmam que é o dever do Congresso Nacional legislar sobre o tema. Porém, com o engavetamento da proposta e a chegada das ações ao STF, a Corte é obrigada a emitir uma posição. A determinação da Corte, por sua vez, vai valer até a promulgação de uma lei de autoria do Legislativo.

De acordo com Luiz Fernando Plastino, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), a falta de um posicionamento do Congresso Nacional sobre um tema é prejudicial para as discussões sobre a regulação das redes sociais. Segundo o especialista, em meio a debates da sociedade civil e do Judiciário, o Legislativo, detentor do poder de decidir sobre o tema, está inerte.

“A parada no Congresso é prejudicial porque, enquanto eles não discutem, todo o Brasil discute. A sociedade civil, os usuários da internet, os próprios atores políticos, as empresas e agora o STF. O projeto não ser discutido é uma situação ruim, porque a sociedade está fervilhando e esperando respostas”, disse Plastino.

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Além da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil, Toffoli também determinou que o Congresso tem 18 meses para aprovar uma lei sobre o tema. Plastino destaca que, mesmo com uma lei oriunda do Legislativo, o STF poderá, futuramente, analisar a regulação das redes sociais caso seja provocado.

“A aprovação do projeto pelo Congresso, não vai impedir o STF de julgar. Pode acabar sendo aprovado um projeto sem uma alteração relevante em alguns dos dispositivos que estão sendo contestados pelo STF. Ou seja, mesmo assim o STF vai ter a necessidade de dar as posições dele”, explicou o especialista.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli Foto: Wilton Junior/Estadão

Julgamento do STF deve ser participativo e cauteloso, observa especialista

De acordo com Alexander Coelho, especialista em Direito Digital, o principal entrave do projeto que está engavetado no Congresso é a associação das mudanças com a violação da liberdade de expressão. Segundo Coelho, a discussão das alterações no Marco Civil da Internet são contaminadas por uma “polarização política”.

“As pessoas associam qualquer movimento no Marco Civil da Internet com a liberdade de expressão, e isso traz uma polarização política muito forte. Pega muito mal para o Congresso ver o STF se dedicando e se debruçando sobre esse tema, quando a obrigação constitucional é do Legislativo”, explicou.

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Coelho critica a condução do julgamento pelo STF e analisa que as alterações devem ser feitos sem “pressa”. Segundo ele, é necessária uma discussão com entidades da sociedade civil, organizações jurídicas e representantes das big techs para não haver um prejuízo econômico e jurídico no Brasil.

“Esse é o grande dilema, modernizar o Marco Civil da Internet é válido para enfrentar os novos desafios do século XXI. Mas isso só deve ser possível se for um processo transparente, participativo e cauteloso, para garantir que esses avanços regulatórios não resultem em retrocessos para os nossos direitos fundamentais”, observou.

Apesar do STF, Congresso precisa definir normas para as redes sociais

Para Tainah Sales, doutora em Direito Constitucional, o julgamento do STF será norma seguida pelos provedores, mas é preciso haver a criação de regras pelo Congresso. Isso ocorre porque a Corte pode decidir que o artigo do Marco Civil é inconstitucional, mas não cabe ao Supremo a regulação de detalhes essenciais como prazos, sanções e punições.

“O STF só decide sobre a constitucionalidade de um artigo, mas não consegue regular detalhes. Então, é imprescindível que o Congresso regule e desmistifique a ideia de que essa discussão vai contra a liberdade de impressão e promove uma censura”, afirmou Tainah.

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A especialista destaca a importância de uma definição do Congresso acerca da regulação neste ano de 2025. Segundo ela, a possibilidade de se decidir sobre o assunto em um período distante das eleições presidenciais de 2026 vai afastar possíveis críticas de benefícios a determinados grupos nas campanhas eleitorais.

“Não vai dar a impressão que vai beneficiar um grupo A ou um grupo B do processo eleitoral. Além disso, já é tarde porque os impactos são imensos para a democracia. Não só para os processos eleitorais, mas também na divulgação de discurso de ódio e crimes contra crianças. Ainda existe muito a visão de que a internet é uma terra sem lei”, destacou.

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