Entenda o sumiço das bistecas e outras compras suspeitas do governo Bolsonaro para indígenas

Indicações da Funai foram ignoradas e gestão passada também adquiriu sardinha enlatada e linguiça para compor cestas básicas mesmo sabendo que alimentos não fazem parte da dieta de povos indígenas; casos foram revelados pelo ‘Estadão’ e motivaram abertura de inquérito na PF após determinação do ministro Flávio Dino

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Por Redação
Atualização:

O governo Jair Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca para compor cestas básicas que deveriam ser enviadas ao Vale do Javari, no Alto Solimões (AM), mas a carne congelada nunca chegou às comunidades indígenas. As suspeitas de irregularidades não param por aí. Como também revelou o Estadão, a gestão passada desrespeitou recomendações técnicas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e pagou R$ 4,4 milhões para adquirir sardinha enlatada e linguiça calabresa para enviar ao Território Indígena Yanomami no meio de uma crise humanitária. Os alimentos, contudo, não são tradicionalmente consumidos pelos indígenas e podem gerar doenças.

Ao longo do último mês, o Estadão investigou 5,5 mil compras de alimentos para terras indígenas em todo o País e constatou que, a pretexto da pandemia de covid-19, metade foi feita sem licitação. A reportagem cruzou dados das compras, de responsáveis pelas entregas e recepção das remessas e ouviu lideranças e famílias. Além de potencial irregularidade, os processos revelam, em comum, o desperdício de milhões de reais.

Entenda as suspeitas de irregularidades:

Aquisições

  • No primeiro semestre de 2020, a exemplo de outros órgãos administração pública, a Funai passou a assinar uma série de contratos sem licitação para fornecer alimentos a comunidades indígenas. A prática continuou até 2022, enquanto durou a situação de emergência provocada pela pandemia. Parte desses contratos segue em vigor na atual gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
  • Contratos de R$ 568,5 mil resultaram na compra de 19 toneladas de bistecas (para atender indígenas e funcionários da Funai), mas a carne congelada não chegou aos indígenas do Vale do Javari. Não há sequer congeladores para armazenar o produto. Mesmo que tivesse chegado apenas para os 32 funcionários da Funai que se revezam na base do órgão no local, significaria que cada um teria um quilo de bisteca para comer todos os dias durante o ano inteiro.
  • Em 2022, o governo de Jair Bolsonaro comprou pescoço de galinha superfaturado para indígenas na Amazônia. Sem licitação, o produto custou R$ 260 o quilo. O valor é 24 vezes maior do que o preço médio de R$ 10,7 do mesmo item adquirido em outros contratos fechados no mesmo período pelo governo. Nas prateleiras de grandes redes de supermercados, a carne de pescoço pode ser encontrada por até R$ 5 o quilo.

Fornecedores e gerador de energia

  • Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo Bolsonaro efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bisteca. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus, a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.
  • O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por uma das empresas contratadas para entregar a carne. Mislene Metchacuna Martins Mendes, atual diretora de administração e gestão da Funai, que assinou o contrato de compra, admitiu desperdício de dinheiro público na aquisição. Ela afirmou ao jornal que a Funai ignorou alerta dos técnicos sobre os produtos, mas disse que “a ordem era entregar”.
  • Só na metade de 2022 o Vale do Javari recebeu um gerador de energia elétrica para possibilitar o armazenamento de produtos perecíveis, entretanto o governo Bolsonaro fez empenhos para a compra de bistecas congeladas e outros produtos resfriados desde dezembro de 2020.

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Providências

  • Após a publicação da primeira reportagem da série, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, mandou investigar a compra de bistecas. “Eu vou apurar as informações, pois se trata de atos da gestão anterior e para tanto preciso que se apure junto aos departamentos competentes internos na Funai”, afirmou Joenia ao Estadão. A Funai, entretanto, ainda não deu explicações oficiais.
A presidente da Funai, Joenia Wapichana, mandou apurar a compra de cestas básicas com a inclusão de bistecas congeladas nunca entregues.  Foto: Evaristo Sá/AFP

Yanomami

  • A reportagem constatou que o governo Jair Bolsonaro pagou R$ 4,4 milhões para enviar ao Território Yanomami alimentos que não são consumidos pelos indígenas, durante a crise humanitária que recentemente assolou a etnia. A compra de sardinha enlatada e linguiça calabresa desprezou recomendação técnica da Funai. Também não há registros de que os produtos foram entregues integralmente.
  • O desrespeito à orientação da área técnica virou uma ação no MP, em 2021, que pediu a condenação da União para obrigar o Executivo a considerar estudos antropológicos e nutricionais na composição das cestas básicas. O Estadão mostrou que, mesmo depois da condenação, o governo Bolsonaro não só voltou a adquirir os alimentos inadequados como assinou a maior compra já realizada para a terra indígena de linguiça e sardinha em lata.

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Campeã de vendas

  • A empresa contratada para vender ao governo linguiça e sardinha enlatada foi aberta em 2020, apenas dois meses antes da assinatura do primeiro contrato. Com sede em Boa Vista, a H. S. Neves Junior rapidamente se tornou a campeã nacional em vendas sem licitação para a Funai na gestão Bolsonaro. A empresa alega que é “competência”.

Emergência

  • Entre todos os territórios indígenas do País, a Terra Yanomami foi onde o governo federal mais despendeu recursos, ao longo de quatro anos, para comprar alimentos. Os gastos chegaram a R$ 7,8 milhões. Mesmo assim, centenas de crianças indígenas morreram, vítimas de desnutrição. Em janeiro, o governo Lula declarou emergência em saúde pública na Terra Indígena Yanomami.
  • Líderes da etnia apontam o desperdício de dinheiro com cestas básicas não consumidas, enquanto demandas urgentes por atendimento médico, socorro a crianças desnutridas e expulsão de garimpeiros ilegais na região deixaram de ser atendidas.
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