BRASÍLIA - A equipe de transição do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva estuda uma proposta que aumenta o poder de governadores sobre as polícias civil e militar e reduz a influência do Exército e do governo federal sobre as corporações estaduais. A medida, na prática, visa reforçar o controle sobre as tropas estaduais, que acabaram mergulhadas no debate político-partidário no mandato de Jair Bolsonaro (PL). Parte dos agentes de segurança flertou com radicalismos e ameaças ao sistema democrático, violando regras da corporação.
O esboço do texto entregue ao coordenador da transição, Aloizio Mercadante, conflita com o lobby das cúpulas das polícias, em especial as militares. Elas vinham tentando aprovar uma lei orgânica que restringia o poder dos governadores sobre os braços armados dos Estados e do Distrito Federal. Pela Constituição, as polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros militar são subordinados ao chefe do Executivo estadual.
O anteprojeto de lei foi encomendado pela equipe de Lula ao Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP) e deve ser discutido em reunião do grupo de trabalho do segmento de Justiça e Segurança Pública prevista para esta terça-feira, 29.
O grupo que discute a segurança pública no governo de transição é liderado pelo senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), cotado para ministro da Justiça. Ao Estadão, ele disse apenas que encampar ou não a proposta caberia inicialmente a algum dos relatores da equipe que coordena e evitou fazer uma avaliação geral sobre o texto.
No grupo coordenado por Dino há simpatia por pontos do projeto, como o de reforçar a subordinação aos governadores e o de impedir a convocação das tropas estaduais diretamente pelo Exército. Também não haveria óbice ao incremento ao controle de armas das polícias. No entanto, a aprovação do texto demandaria rediscutir dispositivos “sagrados” para as polícias, como o das regras previdenciárias, o que inviabilizaria o conjunto da proposta.
Na semana passada, o ex-governador do Maranhão recebeu comandantes-gerais das PMs e ouviu deles a reivindicação de apoio à aprovação de uma lei orgânica. Em resposta, disse estar disposto a discutir o pleito desde que “não subtraiam a autoridade dos governadores”.
Projetos já discutidos na Câmara versavam sobre autonomia administrativa e financeira às polícias e foram vistos com preocupação por estudiosos e pelos Estados em virtude de riscos de os governadores se tornarem “reféns” dos comandantes. Os motins nas polícias nos últimos anos aumentaram a preocupação.
Na pré-campanha, manifestações políticas de policiais militares da ativa geraram mobilização dos órgãos de controle por medo de envolvimento das tropas estaduais em um eventual “golpe de estado” puxado por setores das Forças Armadas. A tensão obrigou líderes das polícias a garantirem a subordinação e o respeito à hierarquia.
Mudanças
As mudanças apresentadas pelo fórum estão reunidas em um projeto de lei orgânica para as forças de segurança pública, esvaziando as discussões paralelas travadas no Congresso - reveladas pelo Estadão - com matérias de interesse de cada uma das polícias. O texto estudado pela equipe de Lula obriga que as polícias, além de serem subordinadas aos governadores, sejam coordenadas pela Secretaria de Segurança Pública ou por órgão equivalente no Estado. A obrigação de permanecer abaixo das respectivas secretarias é algo que incomoda as polícias.
A proposta também acaba com a possibilidade de convocação das PMs pelo Exército a qualquer tempo. O texto condiciona o chamado a um ato do presidente da República após consulta ao Conselho de Defesa Nacional e à anuência dos governadores. Em outro ponto que marca a separação da caserna, o anteprojeto do FBSP obriga que as polícias tenham seus próprios códigos de conduta e veda a reprodução, nas tropas estaduais, do regulamento disciplinar do Exército.
O texto também propõe unificação de carreiras. Nas polícias civis, agentes e escrivães teriam mesma nomenclatura e atribuições. Nas polícias militares e nos corpos de bombeiros, a divisão entre praças e oficiais deixaria de existir.
Um outro ponto do anteprojeto é a proposta de revogação de um decreto em vigor desde 1969 que trata da reorganização das polícias e bombeiros. O texto extinto seria incorporado ao projeto de lei. Ocorre que o decreto foi recentemente alterado para definir as regras previdenciárias dos PMs. Os policiais temem que, caso o novo governo acolha a proposta e ela vá para debate no Congresso, eles amarguem perdas.
Pelo anteprojeto do FBSP, as armas dos agentes de segurança deveriam também ser cadastradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, e não só no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, do Exército. Além disso, as atividades de inteligência e investigação só poderão ser auxiliadas por softwares e equipamentos forenses que sejam auditáveis e rastreáveis pelo Poder Judiciário.
As polícias militar e civil estariam ainda obrigadas a publicar na internet anualmente um relatório com informações sobre, por exemplo, quantidade de denúncias recebidas contra policiais, total de profissionais afastados, distribuição de efetivo e avaliação sobre cumprimento do planejamento estratégico.
Inconstitucional
Apesar de criticarem pontos específicos da proposta, as principais entidades de classe batem no aspecto jurídico dela. Dizem que é inconstitucional e que atropela o debate que vem sendo feito há tempo sobre as leis orgânicas específicas. “Parece descabido e intempestivo um projeto que atropela a Constituição Federal e mistura muita coisa, inclusive profissionais com regime e investidura constitucionais diferentes como civis e militares”, afirmou ao Estadão o coronel Marlon Teza, presidente da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme).
O diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, um dos autores do anteprojeto, afirma que a proposta cobre lacunas deixadas nas discussões travadas até agora sobre as leis orgânicas de cada uma das polícias. O texto buscou impor limites, atribuições e reforçar a subordinação das polícias aos governadores. “A nossa proposta respeita o pacto federativo, fortalece o governador, diz o que as polícias podem fazer. Vimos o processo de radicalização no dia a dia da polícia porque elas decidem o que é certo e o que é errado”, disse. “Então estamos dizendo: vai ter que ter um regulamento disciplinar, publicar dados não quando quer, mas por obrigação”, ressaltou. “A polícia precisa ser valorizada, respeitada e bem estruturada, mas também precisa prestar contas.”
Os projetos específicos de lei orgânica, rascunhados pelos próprios policiais, buscam conceituar, por exemplo, o que seria o “exercício do poder de polícia”. Esse é, na avaliação de Lima, outro problema das discussões travadas separadamente no Congresso até aqui. “São conceitos que não dizem respeito apenas à atividade de Polícia Militar. A PM trabalha na lei orgânica dela e a Polícia Civil na sua. Nenhuma das duas está falando de segurança pública”, afirmou o pesquisador.
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