O telefone do jornalista Oliveiros S. Ferreira, editor-chefe do Estadão, tocou na redação na noite do dia 12 de dezembro de 1968. Do outro lado da linha estava o general Sílvio Correia de Andrade, então diretor da Polícia Federal em São Paulo. O general queria saber a manchete da edição do dia 13 do jornal. Oliveiro respondeu: Câmara nega; prontidão. Ela tratava da negativa do pedido para que fosse processado o deputado federal Márcio Moreira Alves em razão da diatribe contra os militares pronunciada no plenário.
O general não sabia ainda do editorial Instituições em Frangalhos. O texto descrevia o presidente Arthur da Costa e Silva como um “ex-general habituado a não admitir que lhe discutam as ordens”, mas que “se viu na pouca edificante posição” de deixar de lado aqueles escrúpulos que o tinham levado a afirmar que jamais transgrediria a lei para tentar arrancar do Congresso a permissão para processar o deputado. Foi o que bastou. Correia de Andrade mandou seus agentes invadirem as oficinas do jornal para apreender a edição de 13 de dezembro de 1968 – à noite seria decretado o Ato Institucional nº 5.
Ainda naquela manhã do dia 13, o jornal organizou seu primeiro ato de resistência à censura: “Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos mais de 60 mil exemplares em caminhões caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição”, lembrou em entrevista ao jornalista José Maria Mayrink, o arquiteto Hagop Boyadijan, então responsável pelas obras de reforma do prédio do jornal na Rua Major Quedinho, onde funcionavam as redações do Estadão e do Jornal da Tarde, também impedido de circular.
Às escondidas foram ainda retirados 84,9 mil exemplares do JT, então dirigido por Ruy Mesquita, pela saída da Rua Martins Fontes, nos fundos do edifício da Major Quedinho. No dia seguinte, chegaram à redação do jornal os censores enviados pelo governo. A ordem dada pela direção aos jornalistas da redação do Estadão era clara: “Façam reportagens e escrevam. Os censores que cortem”. E assim foi até o fim da censura imposta pelo regime. Esse período sombrio foi registrado no filme “Estranhos na Noite - Mordaça no Estadão em Tempos de Censura”, dirigido por Camilo Tavares e com roteiro e entrevistas de José Maria Mayrink (veja abaixo).
A tensão entre o regime e o jornal vinha crescendo na medida em que os editoriais fustigavam os passos do governo de Costa e Silva em direção ao arbítrio. No dia 2 de outubro de 1968, sob o título A conjuntura nacional e as F. Armadas, ele dizia: “Como é de todo sabido, tanto nós como a maioria dos líderes civis da grande campanha fomos deliberadamente postos à margem dos acontecimentos para que se acentuasse a tendência militarista”. O texto terminava com uma acusação:
“O País percebe que, pelo menos algumas altas patentes das forças de terra, não haviam participado desinteressadamente do movimento revolucionário que pôs por terra o ‘comuno nacionalismo’.” A obstrução do governo Goulart era o caminho natural para os liberais, que sonharam 1964 com uma intervenção saneadora, capaz de afastar o perigo de um novo golpe, à moda do Estado Novo varguista – uma ditadura simpática ao nazifacismo, que prendeu, perseguiu e matou opositores – e, por cinco anos, manteve o Estadão sob intervenção. Hoje, passados 60 anos do golpe de 64, poucos se lembram dos acontecimentos e do clima que levou empresários, militares e liberais a agir.
‘A história foi escrita pelos vencidos em 1964′
A história de 1964 foi uma história escrita pelos derrotados, avaliou o Estadão anos mais tarde. A noção de que o anticomunismo tivesse sido a principal causa do movimento faz parte dessa história reescrita pelos perdedores de 64. Não foi isso. Para inúmeros políticos, empresários liberais e boa parte da opinião pública da época era grande a possibilidade de Jango dar um golpe e instalar o que se chamava “república sindicalista”, em aliança com os comunistas.
Importante para compreender a motivação das movimentações daqueles dias é o documento datado de 20 de janeiro de 1962, intitulado Roteiro de Revolução. Era resultado da consulta de altas patentes a líderes civis de oposição, entre eles diretores do jornal, às ideias de Getúlio Vargas, em um culto que se definia vagamente como “varguismo”. “Se as Forças Armadas agirem com o critério devido e a necessária energia, em dois ou no máximo três anos terá voltado o Brasil um estado de saúde política e social que permita o restabelecimento, em perfeitas condições, do regime constitucional.”
Temia-se fundamentalmente que Jango estivesse preparando um golpe inspirado no Estado Novo. Um dos maiores expoentes dessa tese, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN) dizia, no entanto, evitar recorrer aos militares, pois temia que, uma vez no poder, ali se encastelassem por muitos anos. Outros mais otimistas, ou talvez ingênuos, acreditavam que os generais derrubariam Goulart e deixariam o poder rapidamente, convocando eleições em seguida.
Lacerda pretendia disputar a Presidência em 1965 e tinha como principal oponente o ex-presidente Juscelino Kubitschek, do PSD. Enquanto isso, João Goulart tentava reformar a Constituição para que pudesse disputar a reeleição. Goulart nunca foi eleito presidente da República. Ele assumiu o cargo de presidente, por determinação constitucional, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, em meio a grave crise política. Em uma receita de instabilidade, as regras eleitorais daquela época permitiam que presidente e vice concorressem por partidos diferentes. Jânio era da UDN. Goulart, do PTB. Os dois partidos tinham ideias opostas de Brasil.
“Acho fundamental, para que se possa fazer uma análise objetiva e fria sobre a chamada revolução de 1964 – que na realidade não foi uma revolução, foi uma contrarrevolução, não foi um golpe, mas um contragolpe – situá-la no tempo político internacional. No começo dos anos 1960, com a vitória de Fidel Castro e com sua entrada no jogo do bloco soviético, o foco principal da Guerra Fria passou a ser a América Central, o centro geográfico das Américas. O risco era real. Diz-se que a história é sempre escrita pelos vencedores. A história do golpe de 64 foi escrita pelos derrotados”, avaliou Ruy Mesquita, diretor do Estadão, em 2004.
Nove dias depois da derrubada de Goulart e empossado presidente o general Humberto Castello Branco por eleição indireta no Congresso Nacional, o Estadão externou seu primeiro incômodo com o rumo que as coisas estavam tomando. Em editorial no dia 10 de abril de 64, o jornal considerou necessário o Ato Institucional, que viria a ser chamado de AI-1 com a edição de outros mais tarde, mas alertou: “espera-se que vigore somente até 1966 com a posse de um novo presidente eleito.”
Acervo Estadão: leia a troca de cartas entre Ruy Mesquita e Gilles Lapouge sobre o 31 de março de 1964.
Em 27 de outubro de 1965, veio o segundo Ato Institucional, o AI-2. Dobrado pela ala radical de militares organizados em torno do general Arthur da Costa e Silva, Ministro da Guerra, Castello romperia o compromisso com a rápida redemocratização. O AI-2 instituiu eleições indiretas para a Presidência e os governos estaduais. Seus complementos, editados logo em seguida, o AI-3 e 4, acabaram com os partidos tradicionais, criando apenas dois, um governista, a ARENA e outro, de oposição consentida, o MDB. O cenário temido por tantos animadores do golpe de 64 se materializava. A “revolução” começou ali a abrir espaços para os clones de Évariste Gamelin, o fanático dos fins justificam os meios do célebre romance “Os Deuses Têm Sede”, de Anatole France, competentemente traduzido para o português por Mario Laranjeira e editado em 2007 pela Editora 34.
Os liberais, democratas e até muitos dos eternos insatisfeitos com o varguismo e seus sucessores, Carlos Lacerda à frente, romperam com o regime dos generais. Para o Estadão, o AI-2 sinalizou o começo da escalada da férrea oposição ao militarismo e ao adiamento para as calendas da reinstitucionalização da vida política do País, que culminaria com a invasão da gráfica do jornal no dia 13 de dezembro de 1968.
As instituições em frangalhos
O duro e corajoso texto do editorial Instituições em Frangalhos, que abria a seção Notas & Informações da edição recolhida pela polícia foi o último escrito por Julio de Mesquita Filho. O preço pago pelo jornal por sua atitude seria alto. “Nunca o Estado cogitou dos custos possíveis da obediência a um comando da sua consciência cívica. O preço que nós pagamos pela derrota de nossos ideais em 1964 foi caro: foi a vida de meu pai, em primeiro lugar”, afirmou Ruy Mesquita em entrevista de 2004.
Após a apreensão do jornal, Julio de Mesquita Filho deu a seu filho e também jornalista Julio de Mesquita Neto a missão de informar ao governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, e ao general Correa de Andrade que, em hipótese alguma, o jornal faria autocensura. Se o governo quisesse, ele que mandasse censores às redações do grupo. “Com o AI-5, quando parou de escrever, como escrevia diariamente, o primeiro editorial do Estado, ele caiu doente. Era um homem de uma saúde muito boa, mas era um psicossomático. Foi o trauma moral pelo que estava acontecendo no País que o levou à morte”, contou Ruy Mesquita. Julio de Mesquita Filho morreu sete meses depois da apreensão da edição, em julho de 1969.
Na primeira fase do ataque aos jornais do grupo, os censores permaneceram na sede do Estadão o até o dia 6 de janeiro de 1969. Depois, passaram a executar a censura prévia por telefone ou por meio de bilhetes e listas de assuntos proibidos, até que decidiram retornar fisicamente ao jornal em agosto de 1972.
Leia aqui a edição original em que foi publicado o editorial “Instituições em Frangalhos”, em 13 de dezembro de 1968, e a transcrição do texto.
Uma história de mordaças: a censura ao ‘Estadão’
Não foi a primeira vez que o jornal amargava esse tipo de atentado contra uma das liberdades básicas da República. Em 1917, após a declaração de guerra do Brasil à Alemanha, o jornal enfrentou a primeira censura imposta por um governo em sua história. O jornal se recusou a substituir os textos amputados pela polícia e mandou deixar os espaços em branco nas edições do Estadão até conseguir no Supremo Tribunal Federal (STF) a derrubada da censura.
Como o AI-5 impedia o recurso à Justiça contra decisões da ditadura que tinham origem no ato institucional, não foi possível ao jornal enfrentar pela via judicial a violência do regime inaugurado em 1964. Tampouco os policiais da ditadura permitiram que o recurso do espaço em branco nos dois jornais denunciasse a sua violência. O Estadão era, então, obrigado a preencher o que fora cortado se quisesse ser liberado.
A solução foi publicar textos aleatórios, para que o leitor entendesse o que estava acontecendo. Proibido de noticiar um texto sobre a demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, em sua primeira página, o Estadão substituiu, em 1973, a foto dele por uma publicidade da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado, que anunciava: “Agora é samba”. Havia ainda cartas inventadas pela redação, comunicações judiciais, notícias sobre a criação de animais e o cultivo de flores em páginas nobres do jornal.
O resultado, porém, foi insatisfatório. Muitos leitores – como contou José Maria Mayrink – passaram a cumprimentar o jornal pelo apoio ao cultivo de flores ou à literatura, sem se darem conta do que se passava. Foi o que aconteceu quando o poema, I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, saiu na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973.
O jornal decidiu então, publicar conteúdos repetitivos que dessem aos leitores uma pista de que aquilo estava saindo no lugar de matérias vetadas pela censura. O redator Antonio Carvalho Mendes, o Toninho, responsável por quase cinco décadas pela seção de falecimentos do Estadão, sugeriu que se publicassem somente versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. O poeta apareceu 655 vezes no jornal. No Jornal da Tarde, em substituição às reportagens cortadas, ao invés de Camões, saiam apenas receitas de bolo e doces. Foi tanto Camões e tanto bolo que os leitores entenderam o que se passava. Já os censores...Bem eles devem ter ficado perplexos por estarem cada dia mais cultos e mais gordos.
A censura nos jornais do grupo só acabaria em 3 janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário do Estadão. Segundo lembrou Ruy Mesquita, o presidente Ernesto Geisel cumpria com aquele ato um compromisso feito ao assumir a Presidência, em março de 1974. Levantamento feito pela professora Maria Aparecida Aquino, da USP, mostra que, ao todo, foram cortados 1.136 textos no Estadão, de 29 de março de 1973 até o fim da censura.
Nesse período, o jornal nunca deixou de denunciar a ação contra a liberdade de imprensa. Julio Neto recebeu em nome do jornal o Prêmio Pena de Ouro da Liberdade, da Federação Internacional dos Editores de Jornais. Em 19 de setembro de 1972, Ruy Mesquita mandou um telegrama para o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, contra as novas regras impostas pela PF aos jornais. Aqui o publicamos na íntegra:
“Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura...Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas...”
‘Matem o meu marido!’
Derrubada a censura, o jornal continuou a enfrentar os excessos do regime. Foi assim que publicou a carta de Terezinha Coelho, mulher do dirigente comunista e ex-deputado federal Marco Antônio Tavares Coelho. Era 20 de fevereiro de 1975 quando ela pôde visitar por dez minutos o marido detido no Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2º Exército. Tratava-se de uma rara concessão do regime, diante da repercussão da prisão do ex-parlamentar.
Tavares Coelho estava 20 quilos mais magro, após uma série de sevícias que sofrera nos calabouços do Rio e de São Paulo. Terezinha deixou a caserna e procurou o jornalista Ruy Mesquita na sede do Estadão, no bairro do Limão. Contou-lhe o que vira e ouvira.
Doutor Ruy telefonou, de imediato, ao ministro da Justiça, Armando Falcão. Na manhã seguinte, o ministro do Exército, Sylvio Frota, teve de se virar com mais um laudo feito pelo legista Harry Shibata – o mesmo que atestaria meses depois o suicídio do jornalista Vladimir Herzog, nas dependência do DOI – para “provar” que Coelho estava bem nutrido e com a integridade física preservada. O Estadão publicou então a dramática carta de Terezinha, com um apelo: “Matem meu marido, mas não o torturem! Não o aviltem, pelo amor de Deus”.
O jornal defendeu ainda seus profissionais, procurados ou presos ilegalmente e torturados pelo regime até o fim do AI-5, em 1978. Editorialista do JT, Marco Antonio Rocha, o Marquito, amigo do jornalista Vladimir Herzog, assassinado dias antes sob tortura, era também procurado pelo DOI-Codi. Ele contou que telefonara para o Doutor Ruy e falou que iria se refugiar na embaixada da Iugoslávia. “Ele respondeu quase como numa ordem: ‘Nada disso. Venha para São Paulo e para o jornal. E fique no jornal. Não vá para sua casa’.”
No jornal, Ruy Mesquita disse que naquela noite Marquito dormiria na casa, no Pacaembu. E telefonou de novo para Armando Falcão. “O repórter que vocês estão procurando está aqui na minha frente, se você quiser, mande uma patrulha invadir o jornal para prendê-lo.” Falcão ligou mais tarde para dizer que o editorialista deveria se apresentar no dia seguinte – 27 de outubro de 1975 – ao comando do 2.º Exército. E lá ele foi, acompanhado do Doutor Ruy e de Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas. Ficou dez dias detido. Mas teve a vida e a integridade física preservadas.
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