Um vídeo no Instagram engana ao afirmar que o relatório do PL que pede invalidação dos resultados das urnas eletrônicas pode embasar a convocação de uma nova data para eleições. O Código Eleitoral brasileiro determina que novas eleições devem ser convocadas se mais da metade dos votos do País forem considerados nulos. No entanto, o relatório entregue na última terça-feira, 22, não prova fraude. Portanto, não provocaria a aplicação do artigo 224 do Código, que prevê a convocação de novas eleições em até 40 dias.
O argumento consta em um comentário feito por um vereador de Bauru (SP) na Jovem Pan News de Bauru na última quarta-feira, 23. Um trecho da fala 25 mil visualizações e mais de 6 mil curtidas em 24 horas no Instagram. Os comentários mostram que internautas entenderam que o Código Eleitoral está sendo descumprido, o que não é verdade.
Segundo especialistas em direito eleitoral e constitucional ouvidos pelo Estadão Verifica, o relatório do PL não prova fraude. Para que os votos de um candidato sejam anulados, é preciso uma prova cabal de que isso tenha ocorrido, o que não é o caso. O comentário também engana ao citar outro dispositivo, o artigo 142 da Constituição Federal, para sugerir que cabe às Forças Armadas tomar providências para garantia da lei e da ordem, caso o TSE resolva descumprir o dispositivo legal. Isso também não é verdade: o artigo 142 não admite intervenção militar.
O comentário foi feito mais de uma vez em transmissões do dia 23 pela emissora de TV em Bauru. O autor da fala é o vereador Eduardo Borgo (PMB), que também é advogado. Durante o comentário, ele diz que a base jurídica para a convocação de uma nova eleição está no artigo 224 do Código Eleitoral. O artigo determina que, se mais da metade dos votos do País forem considerados nulos na eleição presidencial, as demais votações serão prejudicadas e o Tribunal -- nesse caso, o TSE -- terá que marcar uma nova eleição num prazo de 20 a 40 dias.
O PL, contudo, não diz no relatório que os votos são nulos, e sim que 59,2% das urnas usadas no segundo turno são de modelos anteriores a 2020 e apresentaram uma falha que impediu que elas tivessem números de série individuais. Para o partido, os votos dessas urnas não podem ser considerados porque as urnas não podem ser identificadas, enquanto aqueles depositados no restante das urnas, de modelo UE 2020, dariam uma vitória a Bolsonaro com 51,05% dos votos válidos no segundo turno. O Verifica já mostrou que o argumento não se sustenta, já que há mais de uma forma de identificação das urnas eletrônicas.
O ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, rejeitou a ação do PL na última quarta, 23, e determinou o pagamento de multa no valor de R$ 22,9 milhões por "litigância de má-fé". Antes, no mesmo dia da entrega do relatório, Moraes já havia dito que o PL deveria incluir o 1º turno das eleições na contestação, sob risco de a ação ser rejeitada.
Procurado pelo Verifica, o vereador Eduardo Borgo disse em nota que o relatório do PL é suficiente para que seja deferido um pedido de verificação extraordinária com base no artigo 51 da Resolução n° 23.673/2021, do próprio TSE. "Sendo confirmado o conteúdo do relatório dos três peritos formados no ITA, em consonância com o Relatório produzido pelas Forças Armadas, após a ampla defesa e o contraditório, os votos deverão ser anulados", diz Borgo.
Ele afirma que, apesar de ação ter sido rejeitada pelo ministro Alexandre de Moraes, ainda cabe recurso, já que a decisão foi monocrática, e que isso não prejudica a instauração de um inquérito policial por crime militar. Isso porque o vereador disse pretender entrar com uma representação junto ao Procurador Geral da Justiça Militar até a próxima segunda-feira, 28, com base em uma entrevista concedida ao Estadão pelo ex-presidente do TSE, ministro Edson Fachin, em fevereiro deste ano.
Na ocasião, Fachin disse que a Justiça Eleitoral já poderia estar sob ataque de hackers, não apenas de atividades criminosas, mas de países como a Rússia. O vereador entrará com a representação sob o argumento de que um "possível ataque à soberania representa perigo à segurança externa do País".
Anulação dos votos exige prova cabal de fraude
Para a advogada Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contudo, o argumento do PL não é suficiente para determinar que os votos são considerados nulos. "Teria que ter uma prova cabal de que os votos foram fraude. Por exemplo, quando se constata, através de provas, que o candidato que venceu a eleição comprou votos, portanto cometeu um crime eleitoral. Então, nesse caso, sim, incide aquele artigo do Código Eleitoral. O relatório apontando que, quem sabe, talvez, as urnas não pudessem ser auditadas não é prova cabal de uma fraude eleitoral. Uma fraude eleitoral precisa de algo mais grave, não uma mera suposição", aponta.
Ela observa ainda que, neste caso, se fosse verdadeira a existência de fraude, teriam que ser anuladas todas as eleições, inclusive o 1º turno, para deputados, senadores e todos os 27 governadores, já que as urnas foram usadas nos dois turnos, e não apenas no segundo. "Eles falam em relação às urnas e o que querem é anulação de todos os votos naquelas urnas, portanto eles não comprovam que teve fraude nos votos. Eles deveriam comprovar o motivo pelo qual teve fraude nos votos que estão na urna, mas eles dizem efetivamente que o problema é com as urnas em termos genéricos", diz Cyrillo.
Especialista em direito eleitoral, o advogado Alberto Rollo também sinaliza que não cabe aplicação do artigo 224 nesse caso. "Tudo isso é de uma ignorância profunda. O TSE, de forma técnica, já rejeitou todos os argumentos, está na própria decisão. Não tem como considerar corretas apenas a parte das urnas em que o Bolsonaro ganhou e não admitir que, se as mesmas urnas foram usadas no primeiro turno, se houvesse nulidade, deveria ser pelos mesmos motivos nos dois turnos. Está muito longe a aplicação do artigo 224", afirma.
Ataques a Alexandre de Moraes
Ao longo do comentário, o vereador insinua que a convocação de uma nova eleição poderia não acontecer por vontade pessoal do presidente do TSE, o ministro Alexandre de Moraes. Ele, afirma, então, que a convocação não estará mais nas mãos do ministro e que, se ele se recusar a cumprir o que está previsto em lei, o Ministério Público Federal (MPF) tem a obrigação de punir os culpados e, junto com o Tribunal, providenciar a convocação de um novo pleito.
A atuação do Ministério Público está realmente prevista nos parágrafos 1º e 2º do artigo 224 do Código Eleitoral, mas isso não significa que a instituição tenha a atribuição de convocar eleições caso o ministro Alexandre de Moraes não o faça, como dá a entender o comentário. "As atribuições do Ministério Público Federal estão nos artigos 127, 128 e 129 da Constituição Federal e na Lei Complementar 73, e em nenhum momento lá está convocar eleições. Não existe isso, o MPF não tem essa atribuição. O Ministério Público Federal é titular da ação penal e defensor do povo, como a gente chama. É defensor da democracia, dos direitos humanos", diz Carolina Cyrillo.
Ao Verifica, Eduardo Borgo afirmou que vários aspectos devem ser analisados no do que respeito à "responsabilização do ministro Alexandre de Moraes". Segundo ele, a ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon disse que o Judiciário assumiu um lado nessa eleição, e que se a denúncia dela for confirmada, "deve ser instaurado um processo visando apurar os fatos e, sendo confirmado, devem ser punidos aqueles que se afastaram da imparcialidade, diante a necessidade de as instituições serem preservadas".
Artigo 142 não permite intervenção militar
O último argumento a aparecer no vídeo é de que, se a lei não for cumprida em nenhum desses casos, entra em ação o artigo 142 da Constituição Federal. Bolsonaristas vêm recorrendo a esse dispositivo como se ele servisse de amparo legal para justificar uma intervenção militar, mas isso não é verdade. O Estadão Verifica e o Projeto Comprova já desmentiram essa tese, e os dois advogados especialistas consultados para esta checagem também descartam que o artigo torne legal um golpe militar.
O artigo 142 da Constituição diz que "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
"O artigo 142 da Constituição Federal não serve pra golpe. Seria usado em caso de colapso da segurança institucional e provocado por um dos poderes", afirma Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral.
Carolina Cyrillo acrescenta que o artigo não admite intervenção militar, nem serve como autorização para isto. "No artigo 142 da Constituição não existe intervenção militar, os militares não são o quarto poder, os militares não têm essa atribuição e os militares não querem ter essa atribuição. O artigo 142 é para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário possam contar com as Forças Armadas, caso haja uma agressão contra a democracia", explica.
Segundo ela, não há possibilidade de as Forças Armadas interferirem nos três poderes. O que elas podem fazer é manter a democracia interna a pedido dos poderes. "O problema desses discursos, tanto de uso do MPF quanto das Forças Armadas, é querer transformar instituições de Estado, de garantia do Estado Democrático de Direito, como as Forças Armadas e o Ministério Público, em instituições golpistas. Não tem cabimento nenhum, elas servem para proteger a democracia, e não para fazer golpe", pontua Cyrillo.
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