É falso o conteúdo de um vídeo com mais de 350 mil interações no Facebook que afirma que o indígena José Acácio Serere Xavante é o "primeiro cacique a ser preso no Brasil". Ao longo do vídeo, o autor do vídeo engana ao afirmar que indígenas sempre foram inimputáveis no País e que "bastou um índio apoiar o presidente Jair [Bolsonaro] que isso acabou". O entendimento sobre a inimputabilidade indígena mudou, pelo menos, desde a Constituição Federal de 1988. Além disso, há notícias sobre indígenas presos por diversos crimes no Brasil e dados estatísticos oficiais sobre população carcerária indígena.
Serere Xavante tem 42 anos, é pastor evangélico e se apresenta como cacique do Povo Xavante. Apoiador de Bolsonaro, ele ganhou destaque for discursos acalorados contra a vitória de Lula. Ele foi preso em Brasília no final da tarde da segunda-feira, 12, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. O pedido de prisão temporária partiu da Procuradoria-Geral da República (PGR), que alegou suspeita de supostos crimes de ameaça, perseguição e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Após a prisão, que tem validade de dez dias, carros e ônibus foram incendiados em Brasília e houve tentativa de invasão à sede da Polícia Federal (PF).
Segundo a PF, que executou a prisão, Serere Xavante teria realizado atos antidemocráticos em frente ao Congresso Nacional, no Aeroporto de Brasília, no Park Shopping, na Esplanada dos Ministérios e em frente ao hotel onde estavam hospedados o presidente e o vice eleitos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSB), ambos diplomados na segunda. Ele também pregou, em vídeo, que Lula deveria ser impedido de tomar posse. O processo corre em segredo de justiça no STF.
O Estadão Verifica checou as principais alegações do vídeo que viralizou no Facebook. Confira:
Indígenas são inimputáveis?
Não. O texto original do Estatuto do Índio, de 1973, considerava indígenas inimputáveis, mas o entendimento sobre isso mudou desde a Constituição de 1988, passando pelo novo Código Civil, de 2002, e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, reconhecida pelo Brasil em 2004.
Na prática, o que acontecia no passado era uma separação entre os indígenas isolados e os integrados ou em processo de integração ao restante da sociedade. Era como se, em algum momento, todos fossem deixar de ser índios, como explica este artigo da advogada Ana Paula Caldeira Souto Maior, do Instituto Socioambiental. Os ainda isolados eram inimputáveis, enquanto os demais poderiam ser presos e cumprir penas, embora em condições diferenciadas. Um projeto de lei do deputado federal Sanderson (PSL-RS) tenta derrubar essas condições especiais, mas ainda está em tramitação.
A Constituição de 1988 ajudou a mudar esse entendimento sobre inimputabilidade porque deixou de tratar os indígenas como um povo que fatalmente seria integrado ao restante da sociedade, sendo obrigado a seguir costumes e cultura alheias. A Constituição considerou que os indígenas tinham o direito de manter sua organização social e seguirem seus costumes e cultura. Em artigo publicado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2016, o juiz federal Roberto Lemos dos Santos Filho explicou o entendimento.
"A Constituição de 1988 reconhece a pluralidade étnica e cultural do País. Assegura aos índios o direito à alteridade, é dizer, o direito de serem diferentes e tratados como tais, direito esse reforçado pela Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 19.04.2004. O Código Civil em vigor dispõe que a capacidade dos índios será regulada por lei especial. Assim, emerge ultrapassada e incorreta qualquer interpretação que trate os índios como inimputáveis ou semi-imputáveis em virtude da diferença étnica", disse.
Ele explica que os novos entendimentos deixam claro que, em caso de condenação de um indígena por algum crime, o juiz precisa avaliar se, "de acordo com a sua cultura e seus costumes o indígena tinha condições de compreender o caráter ilícito daquela conduta positivada como crime segundo os padrões da cultura da sociedade envolvente".
A professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carolina Cyrillo destaca que, apesar do entendimento do Estatuto do Índio da década de 1970, tanto a Constituição quando a Convenção Internacional da OIT sobre os povos indígenas não os considera inimputáveis, e apenas o fato de serem indígenas não lhes dá essa condição.
Para outros especialistas ouvidos pelo Estadão, não há impedimento à prisão de Serere Xavante, já que a suspeita que provocou o pedido de prisão pela PGR não tinha relação com um ato característico de povos indígenas, mas de um cidadão comum.
Outros caciques já foram presos?
Outra alegação do vídeo viral é de que Serere Xavante é o primeiro cacique a ser preso no Brasil. Isso é falso e facilmente desmentido com uma busca na internet por notícias sobre a prisão de caciques. Em março deste ano, por exemplo, um cacique foi preso acusado de receber 20% do ouro extraído pelo garimpo ilegal em uma terra indígena no Mato Grosso.
Em dezembro de 2015, a Operação Crátons, da Polícia Federal, um desdobramento da Operação Lava Jato que investigava o garimpo ilegal de diamantes na Terra Indígena Roosevelt, em Rondônia, prendeu seis lideranças indígenas - duas tiveram seus nomes divulgados: os caciques Nacoça Pio Cinta Larga e Marcelo Cinta Larga.
Há mais notícias sobre prisões de indígenas: na Bahia, em 2018, um indígena de uma aldeia pataxó em Santa Cruz Cabrália foi preso acusado de atuar como mensageiro para traficantes. Também na Bahia, em 2016, um indígena foi preso depois de matar o cunhado a facadas.
Os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de dezembro de 2019, apontavam que, dos 657.844 presos no sistema carcerário brasileiro, 1.390 eram indígenas. O maior número ficava nos estados do Mato Grosso do Sul (322), Rio Grande do Sul (310), Bahia (238), Roraima (138) e Ceará (93).
Espancamento durante a prisão?
Entre as alegações do vídeo, uma é de que houve violência no momento da prisão de Serere Xavante. O autor do vídeo lê o comentário de uma pessoa que diz ter testemunhado a prisão e que os policiais bateram no indígena até que ele ficasse desacordado. Um vídeo obtido pela CNN mostra o momento da prisão e não há cenas de violência. É possível ver um homem de pé e de costas, usando um cocar, conversando com outro homem.
A Polícia Federal negou abordagem violenta. "O preso encontra-se acompanhado de advogados e todas as formalidades relativas à prisão estão sendo adotadas nos termos da legislação, resguardando-se a integridade física e moral do detido, diz nota oficial.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.
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