A Polícia Federal (PF) apreendeu nesta quinta-feira, 8, um documento no qual são elencados motivos e argumentos para a imposição de um estado de sítio, seguido por um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Especialistas ouvidos pelo Estadão dizem que, apesar desses dispositivos estarem previstos na Constituição Federal do País, a menção é equivocada e busca atribuir um verniz de legalidade à abolição do Estado Democrático de Direito, crime pelo qual são acusados os alvos da Operação Tempus Veritatis, da PF.
A “minuta golpista” é apócrifa, ou seja, não contém assinaturas nem menções a quem seria o responsável pela sua redação. Sabe-se, por enquanto, que o documento foi localizado na sala de Jair Bolsonaro, na sede do Partido Liberal (PL), em Brasília. A defesa do ex-presidente nega que Bolsonaro tenha qualquer relação com a minuta e afirma que a peça corresponde a um documento que já havia sido localizado em formato digital no celular do tenente-coronel Mauro Cid. O advogado de Bolsonaro alega que imprimiu a carta para que seu cliente “tomasse conhecimento” do documento.
Entenda abaixo o que são os termos citados na “minuta golpista” e de que forma eles se relacionam com a suspeita da PF de conspiração contra o Estado Democrático de Direito.
O que é estado de sítio?
O estado de sítio é um dispositivo assegurado no artigo 137 da Constituição Federal. É decretado pelo presidente da República, desde que o mandatário ouça, antes do decreto, o Conselho da República o e Conselho de Defesa Nacional. Tratam-se de órgãos de aconselhamento do presidente, que só são acionados em situações excepcionais, tais como o decreto do estado de sítio, de defesa ou de intervenção federal.
Os Conselhos possuem formação específica, mesclando ministros de Estado, líderes dos Três Poderes e até brasileiros natos sem cargo eletivo. Integram o Conselho da República:
- Presidente da Câmara dos Deputados;
- Presidente do Senado Federal;
- Líderes da maioria e da minoria na Câmara;
- Líderes da maioria e da minoria no Senado;
- Ministro da Justiça;
- Seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo presidente, dois eleitos pelo Senado e dois eleitos pela Câmara. Possuem mandato de três anos, vedada a recondução.
O Conselho de Defesa Nacional, por sua vez, é responsável pelo aconselhamento do presidente em “assuntos relacionados à soberania nacional e à defesa do Estado democrático”, nos termos da Constituição. Esse órgão é composto do:
- Vice-presidente;
- Presidente da Câmara;
- Presidente do Senado;
- Ministro da Justiça;
- Ministro da Defesa;
- Ministro das Relações Exteriores;
- Ministro do Planejamento.
- Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
Mesmo com o aval desses conselheiros, o estado de sítio deve ser autorizado previamente pelo Congresso Nacional. E, uma vez em vigor, ele impõe ao País um regime de exceção, no qual alguns direitos e garantias individuais ficam suspensos, tais como o direito de ir e vir, a liberdade de reunião, o sigilo das comunicações e a liberdade de imprensa.
Na Constituição, é dito que o estado de sítio pode ser convocado em casos de “comoção grave”. Além disso, deve ter o período e a área de vigência delimitados à ocasião de seu decreto. Esse tipo de intervenção também pode ser requisitada para excepcionalidades nas quais o estado de defesa, um outro dispositivo constitucional, tenha sido convocado e se mostrado inefetivo.
O que é estado de defesa?
Previsto no artigo 136 da Constituição, o estado de defesa também é convocado para situações de perturbação “grave” da ordem pública e, em muitos aspectos, se assemelha ao estado de sítio, inclusive na ouvidoria prévia dos Conselhos da República e de Defesa Nacional.
No entanto, há uma diferença crucial entre os dois: o estado de sítio entra em vigor com autorização prévia do Congresso; o de defesa passa a valer a partir do decreto presidencial e, só depois disso, os parlamentares aprovam ou rejeitam o pedido. No estado de defesa, também ficam suspensos direitos como o de reunião e os sigilos telefônico e de correspondência.
Já houve estado de defesa e de sítio no Brasil?
Na vigência da Constituição Federal de 1988, nunca houve convocação de estado de defesa ou de estado de sítio. A última vez em que uma situação semelhante ocorreu foi há 40 anos, quando ainda vigorava outra Constituição e o País estava sob o comando da ditadura militar.
Em 18 de abril de 1984, às vésperas da votação da Proposta de Emenda à Constituição Dante de Oliveira, que permitiria eleições diretas para a Presidência da República, foi decretado um “estado de emergência” em Brasília. O dispositivo, nesses termos, não existe no atual texto constitucional.
A capital federal foi sitiada sob o comando do general Newton Cruz, do Comando Militar do Planalto. O objetivo era cessar o direito a manifestações públicas que pressionassem os congressistas a aprovar a medida. A imprensa foi censurada e a transmissão em tempo real da votação foi proibida. A emenda das Diretas Já acabou rejeitada pelo Congresso.
O que é GLO?
Não há precedentes para o estado de sítio e o estado de defesa, mas outras medidas de exceção previstas na Constituição Federal já entraram em vigor, como a intervenção federal – que não deve ser confundida com “intervenção militar” – e a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), citada na “minuta golpista” localizada pela PF.
A GLO é disposta no artigo 142 da Constituição. Enquanto estiver em vigor, as autoridades do Exército passam a exercer o poder de polícia, o que confere permissão para revistar pessoas, dar voz de prisão e fazer patrulhamento.
Todos os presidentes desde 1992 acionaram a GLO localizadas para conter uma crise de segurança pública, inclusive Lula, que já assinou 41 decretos do gênero. Levantamento do Estadão apurou que, nos últimos 30 anos, o Brasil teve uma média de cinco GLOs por ano.
O que é intervenção federal?
A intervenção federal (em outros entes federativos, o que é diferente de intervenção militar) é prevista no artigo 34 da Constituição. Para ser baixada, os conselhos ao dispor do presidente também devem ser consultados. Foi decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diante da crise na segurança pública do Distrito Federal com o ataque aos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. Na ocasião, a segurança do PF ficou sob a responsabilidade do interventor Ricardo Cappelli.
GLO, intervenção federal e ‘intervenção militar’
A GLO e a intervenção federal se assemelham por serem destinadas a crises de segurança pública. No entanto, resguardam diferenças cruciais entre si: a GLO não precisa de autorização do Congresso; a intervenção, sim. Além disso, durante a vigência de GLO, as tropas estão subordinadas ao comando das Forças Armadas, enquanto na intervenção federal a segurança pública fica na alçada do interventor nomeado.
Intervenção federal não deve ser confundida com “intervenção militar”, uma medida sem previsão legal e que se refere à ruptura de um regime legitimamente estabelecido por meio da violência de um comando militar.
Estado de sítio ou de defesa são golpes de Estado?
Não. “São medidas constitucionais e previstas como excepcionais. É para o Estado estar apto a enfrentar situações graves. Para enfrentar, justamente, uma tentativa de golpe de Estado”, explica Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Segundo o professor, entre as razões “graves” pelas quais essas medidas podem ser decretadas, está, justamente, o impedimento de uma tentativa violenta para a deposição de um regime legitimamente constituído. E, apesar de suprimirem temporariamente direitos e garantias, os decretos de estado de sítio e defesa precisam ser delimitados e aprovados pelo Congresso. “O Parlamento, que é o representante do povo, participa ativamente da decisão”, diz Sundfeld.
Por que o estado de sítio é citado na minuta do golpe?
Carlos Sundfeld ressalta que todos os dispositivos de exceção da Constituição Federal possuem escopo de atuação dentro da ordem democrática. “Qualquer referência à Constituição que esses documentos golpistas tenham feito são referências impróprias. É pura retórica para disfarçar o objetivo real: violar a Constituição e acabar com a democracia no País”, diz o professor.
Além de atentarem contra o Estado Democrático de Direito, uma contradição por si só, a evocação aos dispositivos de exceção está confusa na “minuta golpista”. O documento declara o estado de sítio e, “como ato contínuo”, decreta GLO, mesclando duas medidas de caráter distinto.
Sundfeld observa que o documento incorre, no mínimo, em pleonasmo jurídico. “Não dá para entender o que estava pensando a pessoa que escreveu isso”, diz o professor.
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