Ex-ativista conta saga do cofre de Adhemar

Total de US$ 1 mi, dos US$ 2,4 mi, teria sido devolvido à guerrilha

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Quarenta anos após o roubo por guerrilheiros de um cofre que fora do ex-governador Adhemar de Barros com cerca de US$ 2,4 milhões, a ex-militante Maria do Carmo Brito revela que aproximadamente US$ 1 milhão foi devolvido à guerrilha na Argélia sob aval político de Miguel Arraes. Segundo ela, o governador de Pernambuco, então exilado em Argel, garantiu com o depositário da quantia, o embaixador argelino no Brasil, Hafid Keramane, que poderia repassar o controle do dinheiro a Ângelo Pezzutti, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). De Pezzutti, o número da conta em um banco suíço foi, por ordem do ex-capitão Carlos Lamarca, entregue ao ex-sargento Onofre Pinto, que se deslocou de Cuba para a missão. "Eu queria me livrar daquilo, sofri muito", conta Maria do Carmo, uma socióloga e funcionária pública de 66 anos que diz não saber o nome do banco onde o dinheiro estava nem a quantia exata e, pela primeira vez em quatro décadas, revela seu destino. Ela avalia que Pinto, integrante da lista oficial de desaparecidos políticos, tinha alguém para operar a conta na Suíça. Pezzutti morreu em acidente de moto em Paris, em 1975. O assalto, que fez 40 anos ontem, foi cometido por um comando integrado pelo atual ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e ligado a uma organização à qual pertencia a hoje ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff - a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Arraes, que morreu em 2005, não teve acesso ao dinheiro, afirma Maria do Carmo, mas assumiu, com Keramane, um aval que ela chama de "curadoria". Foi a partir do grupo de Arraes que o embaixador fizera contato com Maria do Carmo, que usava o codinome de Lia, e seu primeiro marido, Juares Guimarães de Brito, também da VPR, conhecido como Juvenal e planejador da ação. Depois do assalto, com dificuldades para esconder a quantia roubada, os dois levaram para o diplomata guardar a parte que a organização não utilizaria imediatamente. Em 18 de abril de 1970, durante cerco de agentes no Rio, Juares deu um tiro no ouvido e sua mulher foi presa. Rompeu-se assim o contato com o embaixador. "O que Arraes fez foi dizer: essa pessoa é séria, pode passar (o dinheiro)", relata. O governador, porém, não foi ao encontro em que Keramane entregou o número da conta na Suíça a Pezzutti, do qual Maria do Carmo também participou. Ele deixara o Brasil em 16 de junho de1965. DOCUMENTO Maria do Carmo deu entrevista depois de ler cópia de documento localizado pelo Estado no Arquivo Nacional. A Informação nº 4322 S/102-1-CIE, do Centro de Informações do Exército, transcreve um suposto resumo de suas declarações em 3 de maio de 1970 na Operação Bandeirantes, centro de torturas da ditadura em São Paulo. Nele, a ativista disse reconhecer, por foto, Keramane como o homem a quem Juares entregara US$ 1 milhão para guardar. Quando, depois, o comandante do roubo do cofre pediu o dinheiro de volta, o diplomata, segundo o depoimento, disse que ele se reduzira a US$ 900 mil e estava em vários locais, sendo necessário tempo para reuni-lo. A depoente afirmou aos agentes não saber se Juares conseguira reaver a quantia. "É claro que eu conhecia o nome do Keramane, mas disse que só sabia que era um homem gordo da embaixada e o reconheci por foto", conta ela. Veterano da guerra de independência com a França, o diplomata era conhecido como autor do livro La Pacification, no qual relatou as torturas de franceses contra argelinos durante o conflito. Não foi possível localizá-lo. No depoimento, a ex-guerrilheira, que ao ser presa usava o nome falso de Gilda Helena Dias, teria dito que ela e o marido conheceram Keramane por meio de um amigo de Juares, que não identificou. Em julho de 1969, após o roubo, a VAR-P tinha dificuldades para guardar o dinheiro roubado. Os US$ 2,4 milhões estavam com um militante, identificado como Chico. Então, o casal teria decidido dividir a quantia pela organização e deixar parte com Keramane. A hoje servidora, porém, não reconhece parte do depoimento, que detalha como o dinheiro teria sido dividido entre VAR-Palmares e VPR. Ela avalia que, como era prática na época, assinou um documento no qual os interrogadores incluíram fatos cujas fontes precisavam atribuir a alguém. "Considero uma colagem", afirma.

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