Ex-procurador de Dirceu aconselhou coronel da PM no 8/1 e prometeu cargo no governo Lula

Empresário Fernando Neto, dirigente do PT de Brasília, chegou a ditar mensagem que deveria ser enviada por militar ao interventor; procurados, ele o Palácio do Planalto não quiseram comentar, e o coronel Jorge Eduardo Naime disse que petista se apresentava como parte da equipe de transição

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Foto do author Vinícius Valfré
Atualização:

BRASÍLIA – O empresário e dirigente do PT local de Brasília, Fernando Nascimento Silva Neto, procurador do ex-ministro José Dirceu por cinco anos, deu orientações sobre como agir nos bastidores do 8 de Janeiro ao coronel Jorge Eduardo Naime, então chefe de Operações da Polícia Militar do Distrito Federal. O petista ditou o que o coronel deveria dizer ao se apresentar ao então interventor na segurança pública, Ricardo Cappelli, e chegou a prometer ao policial um cargo no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Fernando Neto aparece como dono de um banco que opera em Brasília com um lastro falso de R$ 8,5 bilhões e diz participar desde 2018 da “montagem” da empresa, que envolve “laranjas”. Como revelou o Estadão, o empresário vinha usando a firma para acessar ministérios e o Congresso. A atuação do banco está na mira da Polícia de São Paulo e da Polícia Federal. O petista foi procurador de José Dirceu de 2018 a 2023.

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O ex-ministro ressaltou que rompeu com Fernando Neto. Procurado, o empresário não comentou - ele não é investigado pelo 8 de Janeiro. Naime afirma que Neto se apresentava como “articulador e membro da equipe de transição”. E o Palácio do Planalto informou não ter o que comentar porque “o referido cidadão não se encontrou com o presidente da República, com nenhum servidor do Gabinete da Presidência da República, assim como da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (leia mais abaixo).

Os diálogos do empresário Fernando Neto com o coronel Jorge Naime aparecem em relatório da Polícia Federal sobre o 8 de Janeiro produzido a partir das trocas de mensagens de policiais investigados. Cerca de meia hora após o início da destruição na Praça dos Três Poderes, o militar conversava com Fernando Neto. No celular do policial o nome está salvo como “Fernando Neto PT”.

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O coronel Jorge Eduardo Naime em depoimento à CPI da Câmara Legislativa do DF sobre o 8 de Janeiro Foto: Rinaldo Morelli / Câmara Distrital

O petista enviou o número do telefone de Cappelli ao coronel, que perguntou: “O que falo?”. Em dois áudios, Fernando Neto orientou Naime sobre como se apresentar ao interventor.

“Que o comandante-geral foi afastado… que você é o comandante das operações especiais, que estava de férias. Só que você, visto a situação, se colocou à disposição para retornar das férias e assumir as operações a partir de agora. Se coloca à disposição dele e fala que você está integralmente à disposição”, disse, antes de complementar: “Tira do teu colo pelo amor de Deus… só isso!”.

Relatório da PF registra áudio em que Fernando Neto orienta o coronel Naime sobre como ele deveria se apresentar ao interventor, durante as invasões do 8 de Janeiro Foto: Reprodução/Estadão

Naime escreveu ao interventor conforme orientado e, antes de qualquer resposta, enviou um “print” da conversa com Cappelli a Fernando Neto. “Agora é a hora, vou entrar pesado para resolver”, respondeu o empresário.

Por volta das 19h do dia 8, Naime passou a enviar mensagens a Fernando relatando ações que desempenhara no teatro de operações na Esplanada dos Ministérios. “Já limpei o Congresso, o Planalto e o STF. Seguindo para a rodoviária”, escreveu. Em resposta, Fernando deu nova orientação ao militar: “Pede para a galera ir segurar os ônibus e não deixar sair nenhum ônibus de Brasília porque a AGU [Advocacia-Geral da União] já pediu a prisão deles aqui”, enviou.

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Os agentes da Polícia Federal registraram “estranheza” no envio de informações a Fernando Neto em pleno caos. “Causou bastante estranheza, dada a situação praticamente de cenário de guerra, com inúmeros confrontos e, inclusive, com o próprio coronel ferido, o fato de Naime ficar passando informações policiais praticamente em tempo real a Fernando”, diz trecho do documento.

A tentativa de abertura de diálogo de Naime com Cappelli foi infrutífera. Por volta das 21h30 do dia 9 de janeiro de 2023, o coronel pediu para que Fernando Neto descobrisse quem o “queimou” com o interventor. O petista respondeu: “O 02 com o pessoal do Ibanes”. Segundo a PF, a menção seria ao coronel Klepter Rosa Gonçalves, à época subcomandante-geral da PM.

Em 12 de janeiro, quatro dias após os ataques, Naime reforçou em mensagem ao petista que havia sido preterido. Fernando Neto disse que o prazo da intervenção acabaria em breve e que, caso o militar não voltasse para o comando-geral, ele o enviaria ao governo federal.

“Se não voltar pro comando geral com a Celina [Leão, governadora em exercício] vou te mandar pro Gov Federal”, escreveu o empresário. Naime não foi para nenhum dos dois lugares. Acabou preso semanas depois, no início de fevereiro.

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Relatório da PF destaca mensagem na qual Fernando afirma que, se o coronel Naime 'não voltar para o comando-geral', seria enviado para o governo federal Foto: Reprodução/Estadão

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O coronel Naime estava de férias no 8 de Janeiro. Conforme a investigação policial, Fernando Neto sugeriu ao tenente-coronel Petercley Franco, chefe de gabinete da Casa Militar do governo do Distrito Federal de 2019 a 2023, que chamasse o coronel de volta ao trabalho para ele “assumir o comando do efetivo que estava, naquele momento, na Esplanada dos Ministérios”.

Franco afirmou ao empresário ter recebido informação de que Naime “meio que sabia” o que poderia ocorrer no dia 8, sugerindo omissão do chefe do Departamento de Operações. Entretanto, foi prontamente rebatido por Fernando Neto: “Não sabia”, respondeu o empresário petista, que insistiu pelo retorno de Naime.

Ao analisar as condutas do coronel Naime às vésperas dos ataques, a PGR concluiu que o militar usou uma “estratégia deliberada de afastamento, que reforça a conivência implícita com as ações violentas que se aproximavam” e que foi possível identificar “omissões verificadas ainda no ano de 2022″. A investigação detectou que ele inclusive “colocou-se em campo na véspera dos eventos”, mas optou pela omissão.

“Essa desconexão com a missão foi uma forma de minimizar a responsabilidade, criando um disfarce com a distância física dos eventos, enquanto o caos se instaura”, destacou a PGR.

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O então comandante de Operação, coronel Naime, e o então subcomandante da PMDF, coronel Klepter, ambicionavam o posto de chefe da PM. O então subcomandante foi alçado ao posto máximo da corporação em 15 de fevereiro de 2023, mas acabou preso em agosto. Ambos estão entre os sete oficiais denunciados por omissão pela Procuradoria-Geral da República.

Petista foi testemunha de coronel do 8 de Janeiro no STF

O empresário petista Fernando Neto foi testemunha de defesa do coronel Jorge Eduardo Naime na ação penal a que o militar responde no Supremo Tribunal Federal (STF). Ele se apresentou na audiência como “CEO de um grupo financeiro, um banco”, descartou viés bolsonarista do policial e disse que o coronel “sempre teve bom trânsito” no PT do Distrito Federal.

Fernando Neto em depoimento ao STF como testemunha do coronel Jorge Naime na ação penal que avalia omissão da cúpula da PM no 8 de Janeiro Foto: Reprodução/STF

O depoimento do empresário ao desembargador Airton Vieira, auxiliar do ministro Alexandre de Moraes, durou dez minutos. Fernando Neto não falou nem foi perguntado sobre a orientação que deu ao militar nem sobre o pedido feito ao coronel Petercley para que Naime fosse escalado para liderar as ações.

Segundo Fernando Neto, ele conhece o coronel há mais de 20 anos e tentou “ajudar de forma voluntariosa”. O vínculo teria começado quando ambos participaram do governo de Agnelo Queiroz, no Distrito Federal. “É alguém da nossa confiança”, disse o empresário.

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Neto negou viés bolsonarista do coronel, o que poderia sugerir interesse na ruptura, ao dizer que ele “sempre foi muito polido, neutro” e “sempre teve bom trânsito e bom relacionamento no PT-DF”.

A página oficial do PT nacional fez uma publicação sobre o depoimento do coronel Naime na CPI do 8 de Janeiro, no Congresso, em junho de 2023. A notícia institucional trata o militar como “bolsonarista”.

“Oscilando entre a imprecisão, o descontrole emocional e uma envergonhada confissão de culpa pela negligência da PM durante todo o período em que golpistas permaneceram acampados na frente do quartel do Exército, desde novembro, Naime não conseguiu explicar como a PM do DF falhou miseravelmente no planejamento da segurança pública em janeiro”, diz o texto.

Em nota, a defesa do coronel Jorge Naime afirmou que a inclusão de Fernando Neto como testemunha demonstra o interesse do próprio coronel de que a conversa fosse analisada no processo. E reiterou que o policial “não tinha conhecimento da dimensão dos eventos quando foi acionado e retornou voluntariamente ao serviço” no 8 de Janeiro.

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A defesa acrescentou ainda que Naime “ajudou o governo de transição” com a segurança do espaço e que “foi reconhecido como alguém altamente qualificado e isento de contaminação política e de confiança do novo governo”. Naquele momento, segundo o coronel, Fernando Neto se apresentava como integrante da equipe de transição.

“Desde o início do governo de transição, Neto se apresentou a Naime como articulador e membro da equipe de transição. Naime não tinha como verificar a veracidade dessa informação, mas sempre se comprometeu a atender todas as demandas apresentadas”, disse, em nota.

O coronel disse ainda que “foi acionado pelo próprio PT”, em referência a Fernando Neto, a quem se refere como alguém que “até hoje, atua como assessor de José Dirceu, figura proeminente no PT”.

A versão contradiz o que o próprio Fernando Neto disse ao Estadão, em novembro: “Não tenho nenhuma relação com o ex-ministro”. Dirceu, por meio da sua assessoria, reafirma o rompimento com o empresário, quando tomou conhecimento de que seu nome estava sendo usado por ele.

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“Após tomar conhecimento de indícios de que Neto estaria falando em seu nome, o ex-ministro deixou de ter relações com ele. Além disso, Fernando Neto não representa José Dirceu junto a empresários, políticos ou interlocutores”, informou.

Procurado, Fernando Neto não quis comentar. Ele se apresenta como “dirigente do PT. Oficialmente, ele é um dos membros do diretório “municipal” de Brasília, instância diferente do PT do Distrito Federal e do PT nacional.

Esta reportagem foi produzida com o auxílio do Pinpoint, ferramenta do Google que ajuda a analisar grandes coleções de documentos usando recursos de pesquisa e de inteligência artificial. Para ver a coleção completa dos documentos analisados nesta reportagem, clique aqui.