Quatro meses antes de receber uma proposta para deixar o governo federal, o ex-secretário Nacional de Portos Diogo Piloni assinou a prorrogação do arrendamento de um terminal na região portuária de Santos de uma empresa controlada pela multinacional que o contratou. O ato não ganhou publicidade no Diário Oficial da União e ficou restrito aos sistemas internos do Ministério da Infraestrutura, à época sob comando de Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato a governador de São Paulo. Um requerimento feito à Comissão de Ética da Presidência da República pede a reprovação da ida de Piloni à empresa por “conflito de interesses”.
Piloni ocupou cargos de gestão no setor portuário nos governos Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). Foi presidente do conselho da Companhia de Docas do Rio, diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e diretor da Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos antes de assumir a Secretaria dos Portos na atual gestão, em janeiro de 2019, no início do governo.
A administração do ex-secretário é assunto sensível à candidatura de Tarcísio ao Palácio dos Bandeirantes. A pasta envolve a gestão de uma intensa disputa de mercado, marcada por trocas de acusações entre concorrentes e até mesmo investigações no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A política de privatizações e concessões de portos é tida como carta na manga e, ao mesmo tempo, telhado de vidro do ex-ministro no debate sobre sua atuação em São Paulo, como mostrou o Estadão.
Piloni anunciou sua saída do governo para integrar os quadros da suíça Terminal Investments Limited (TIL). Em uma joint-venture com a APM Terminal, com sede em Haia, na Holanda, a multinacional controla a Brasil Terminais Portuários (BTP). Segundo apurou o Estadão, a proposta de trabalho, como consultor na área internacional, foi formalizada no dia 31 de março ao então chefe da pasta de Portos. Em junho, ele anunciou sua saída do governo.
O Estadão obteve acesso a uma decisão assinada por Piloni que deferiu um pedido da BTP pela prorrogação do arrendamento de uma área do Porto de Santos. A decisão é de 14 de novembro de 2021, e consta apenas dos sistemas processuais internos do governo federal. A falta de publicidade tem como base um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de 2020, que trata da desnecessidade de publicação quando o ato for “tão somente para dar andamento” a um processo administrativo.
A decisão contou com apoio da área técnica do Ministério da Infraestrutura e da Antaq, segundo apurou o Estadão. O pedido de prorrogação mencionava R$ 1,3 bilhão em investimentos no porto, o que envolve a ampliação do terminal e a compra de maquinários. A entrega do ofício com o pedido de prorrogação foi registrada pela própria BTP, com direito a foto da reunião com Piloni, em maio de 2021.
Piloni deu ciência à Comissão de Ética da Presidência da República em abril de 2022 sobre a proposta que recebeu da TIL. Nos autos do processo, obtidos pelo Estadão, admitiu ter tido acesso a “informações privilegiadas” e que “manteve relacionamento relevante” com a BTP. No entanto, afirmou que essa relação é “irrelevante”, considerando que sua atuação não se daria em “território nacional”.
Em suas considerações ao órgão, Piloni, de maneira geral, admitiu que foi responsável por tratativas sensíveis com empresas do setor, o que inclui a BTP, mas também não expôs em detalhes sua relação com a empresa. A decisão de prorrogação do arrendamento, por exemplo, não é exposta individualmente no processo.
No julgamento, a comissão entendeu que ele deve respeitar uma cláusula de “não atuação no setor portuário brasileiro” e se resguardar, “a qualquer tempo”, de usar informações privilegiadas em razão do cargo que ocupou. Pesou na decisão unânime a favor de Pilani o fato de o cargo assumido por ele ter relação com o mercado estrangeiro, não o nacional, o que envolveria contato direto com sua antiga pasta.
Mesmo assim, a troca da secretaria por um cargo em uma empresa com a qual lidava diretamente continua a motivar questionamentos no mercado de logística. Um deles partiu de uma entidade presidida por um engenheiro da área de ferrovias e foi endereçado ao Comissão de Ética da Presidência da República. Presidente da Associação Guarujá Viva, José Manoel Ferreira Gonçalves pediu, no dia 5 deste mês, ao colegiado, que reabra o processo e impeça Piloni de exercer funções na TIL em razão de alegado “conflito de interesse”.
“O fato é que o então secretário nacional de Portos e Transportes Aquaviários foi no mínimo imprudente ao tratar dos pleitos formulados pela BTP, empresa controlada pela sua atual empregadora, o que demandaria a análise por esta comissão de possível impedimento ético para exercer o cargo privado na TIL”, afirma a entidade, na petição.
Gonçalves é engenheiro civil especialista em ferrovias. Fundou a entidade para acompanhar políticas locais da Baixada Santista, como a discussão em torno de plano diretor, emprego e meio ambiente na área do Porto de Santos.
Concorrentes
Pedidos semelhantes ao da BTP pela prorrogação de arrendamentos na mesma região chegaram a ser negados pela gestão de Piloni à frente da Secretaria do Portos. Um dos casos diz respeito ao arrendamento de um terminal de contêineres da Marimex, cujo pedido de prorrogação foi rejeitado pelo ex-secretário. A decisão foi revertida pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido da própria empresa , com apoio da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegários (Abtra).
A Abtra, que tem entre suas associadas empresas como a Santos Brasil e a DPW, que adquiriu a Embraport, antigo braço portuário da Odebrecht, trava uma guerra contra a TIL pelo controle dos terminais de contêineres em Santos. A disputa, que envolve trocas de acusações, fez com que o Cade abrisse uma investigação para apurar práticas anticompetitivas da empresa suíça. Trata-se de uma disputa entre players que são potenciais concorrentes pela privatização do Porto de Santos, cujo edital foi divulgado na semana passada.
No exercício do cargo, Piloni, por outro lado, também aceitou pedidos de concorrentes da TIL, como o reperfilamento de investimentos em uma área da Santos Brasil, e um outro processo que envolveu investimentos de R$ 700 milhões em um terminal controlado pela DPW. Procurados, a TIL e Piloni não se manifestaram.
Excelente profissional
Ao Estadão, Tarcísio defendeu seu ex-secretário e afirmou, em nota, que Piloni “é um excelente profissional e fez um grande trabalho como secretário nacional no Ministério de Infraestrutura”. Para o ex-ministro, a “decisão sobre o futuro profissional de Diogo Piloni é de cunho pessoal”. “Tenho certeza de que fará um grande trabalho onde escolher seguir sua trajetória e seguirá contribuindo para o desenvolvimento da infraestrutura do País”.
“Nos últimos anos, os portos do Brasil tiveram um indiscutível salto de eficiência, e isso se deve à gestão técnica que foi realizada e que rompeu paradigmas os quais permitiram inclusive que os portos registrassem sucessivos recordes de movimentação de cargas mesmo durante a pandemia”, disse.
O ex-ministro e candidato ao governo de São Paulo afirmou que, “entre alguns exemplos importantes da transformação no setor nos últimos anos, está a realização da primeira desestatização portuária da história, a Codesa, a estruturação da privatização do Porto de Santos, a mudança na gestão nas companhias docas, que passaram a dar lucro após décadas de prejuízo, a aprovação do novo marco regulatório da cabotagem, uma importante transformação na logística brasileira”.
Tarcísio mencionou ainda “o arrendamento de 36 terminais portuários — o maior número já realizado pelo governo federal —, a assinatura de 99 contratos de adesão de Terminais de Uso Privado, consolidando a autorização de cerca de R$ 25 bilhões em investimentos privados em pouco mais de três anos e em um setor no qual mais de 90% dos investimentos são privados, entre outras conquistas importantes”.
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