BRASÍLIA - O primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Jaime Spengler, afirmou ao Estadão que a fé dos católicos não deve ser manipulada para fins espúrios durante as eleições. Dom Jaime também disse que os cristãos não podem se “deixar levar” pelas fake news. “Isso não é digno de alguém que tem amor à pátria”, disse. Essa foi a primeira reação de integrantes da cúpula do episcopado brasileiro, após o ato de campanha promovido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, e seus apoiadores no Santuário Nacional de Aparecida.
Sem ser convidado pela Igreja, Bolsonaro agendou uma visita à basílica, o que levou na quarta-feira, dia 12, milhares de manifestantes ao local. Os bolsonaristas vaiaram a homilia do arcebispo dom Orlando Brandes, discutiram com padres, perseguiram pessoas que vestiam vermelho e hostilizaram profissionais de imprensa. Arcebispo de Porto Alegre (RS), dom Jaime conversou com a reportagem durante as celebrações pelos 70 anos na entidade, em Brasília. Ele disse que as manifestações de extremismo preocupam a entidade, que refletirá sobre o episódio. Bolsonaro busca reduzir a rejeição entre católicos e já havia participado, na semana passada, do Círio de Nazaré, em Belém (PA).
Vimos cenas de hostilidade em Aparecida com a presença de apoiadores do presidente da República e dele. Está havendo contaminação política na Igreja? Não devemos julgar manifestações individuais. O espaço democrático precisa ser preservado. Cada um tem o direito de manifestar as suas posições. Agora, esse direito tem que ser dentro também de um espírito de respeito pela diferença. Quando nós não somos mais capazes de respeitar a diferença, então, sim, precisamos nos preocupar. As manifestações marcadas, talvez, com certo extremismo, é claro que preocupam. Nós como conferência temos uma missão muito particular. Em primeiro lugar é fomentar a unidade a comunhão entre os bispos. Segundo, através desse momento de unidade e da comunhão, cooperar para que a vida do nosso povo possa ser mais cuidada e promovida. E o critério de ação da conferência é e vai ser sempre o Evangelho do crucificado e ressuscitado, a bela e rica tradição da Igreja, sem esquecer a doutrina social da Igreja.
Esse extremismo foi percebido pelo senhor como uma agressão à Igreja? É difícil fazer um juízo de valor sobre o que aconteceu. Todo batizado, todo aquele que se reconhece filho e filha de Nossa Senhora, digamos assim, devotos de Nossa Senhora, tem o direito de participar da vida do Santuário. Se houve ou se há expressões que foram (a Aparecida) com outros desejos ou intuitos não nos cabe julgar. A Mãe acolhe a todos os seus filhos, seja aqueles que têm uma posição ou outra. Ela apontou para todos com carinho e certamente continua repetindo a todos: ‘Façam tudo tudo que meu Filho vos disser’. Daí talvez a inspiração para quem frequenta a casa da Mãe, estar atento a tudo aquilo que o Filho tenha nos dizer. E Ele tem muito a nos dizer nesse tempo.
Já houve uma conversa na CNBB sobre o que ocorreu e o que fazer? Como repercutiu? É claro que isso repercute no seio da Conferência, no seio da Arquidiocese de Aparecida, no seio do presbitério de Aparecida e nas nossas comunidades. Isso requer de nós muita atenção e eu diria algo que o Santo Padre está há tempos tematizando: discernimento. E o discernimento na nossa tradição cristã pressupõe quatro coisas. Primeiro o conhecimento de si mesmo. Eu creio que isso cada um tem que fazer dentro da sua consciência. Segundo, estar a par do que está em questão nesse momento. Todos nós estamos cientes de alguma forma, com maior ou menor intensidade, do que está em questão. O terceiro aspecto é a dimensão da oração, nós precisamos rezar. E por fim a a capacidade de dialogar entre irmãos. Se nós perdermos a capacidade do diálogo, aí sim, eu creio que precisamos rever posições e talvez buscar novos caminhos, que através do diálogo e, repito, entre diferenças porque as diferenças nos enriquecem e exigem de nós pensar com mais radicalidade aquilo que verdadeiramente importa.
O senhor se refere à democracia? Ao Estado Democrático de Direito, sim, e ao mesmo tempo ao cuidado e promoção da vida, sobretudo, dos mais pobres e necessitados.
É algo que a nota da CNBB abordou, a manipulação da fé pode tornar mais opaca a discussão dos problemas do País. Precisamos ter presente uma coisa que por vezes é difícil de trazer à fala. Todo ser humano em si cultiva a dimensão religiosa. Todos temos, eu creio, uma prática religiosa, em maior ou menor intensidade. A experiência da fé para nós tem uma conotação toda própria. A experiência da fé para nós cristãos católicos é expressão de uma experiência de encontro com a pessoa de Jesus Cristo. E a partir dessa experiência de encontro é que decisões, escolhas, opções ganham sentido. Então, para nós, eu creio que isto que é tão sagrado, a experiência da fé, ela não pode ser manipulada, ela não pode ser utilizada para fins espúrios. A experiência na fé toca algo de profundamente íntimo, a identidade de cada pessoa. Isso tem que ser levado muito a sério, precisamos ter muito cuidado, muito respeito e muita atenção.
Parece que há de fato uma divisão política em várias religiões, entre seus seguidores. Acha que foi possível evitar essa manipulação? Todos temos opções políticas, faz parte do convívio social. Cada um tem direito de manifestar as suas opções. Agora, o que nós precisamos também de cuidar com muita atenção é não nos deixar levar por mentiras, por fake news. Isso não é digno, primeiro, de alguém que tem amor à pátria. Segundo, não é digno de alguém que tem Jesus como verdade e caminho, de um cristão. Não podemos nos deixar conduzir por isso.
A CNBB recebeu de parte do presidente Bolsonaro ou da campanha dele um pedido de desculpas pelo que houve em Aparecida, sobretudo pelos apoiadores dele, que vaiaram dom Orlando Brandes? Não tenho essa informação.
Esse ano a CNBB não recebeu candidatos, não realizaram o debate presidencial. Houve um distanciamento. O presidente resolveu participar somente agora de eventos católicos, enquanto está buscando votos. É um direito do candidato. Estamos abertos a dialogar com quem quiser.
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