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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|‘Ainda Estou Aqui’, um filme para reafirmar nossa frágil aliança com a democracia

A democracia, por todo ruído que traz, pelos paradoxos que apresenta, é o que de melhor conseguimos construir na nossa trajetória de milênios.

Foto do author Fabiano Lana

O compromisso com a democracia, em qualquer tempo, em qualquer lugar, deveria ser o pacto mínimo de qualquer político que busque o voto dos eleitores, sob pena de não ser eleito. Isso significa que deveria haver, em tese, uma condenação veemente e consensual à ditadura militar brasileira de 1964, aos regimes do Chile de Pinochet, da Venezuela de Maduro, de Cuba de Fidel e sucessores, da China e seu ainda bem-sucedido capitalismo controlado pelo Estado, da opressão de Ortega na Nicarágua, ou das teocracias iraniana ou árabes, mesmo que sejam prósperas.

É preciso também ficar com uma lupa em regimes como a Rússia de Putin, a Hungria de Viktor Orban, e tantos outros candidatos a autocratas pelo mundo afora. Porque quem defende algum desses sistemas, no fundo não quer uma sociedade realmente livre – quer controle e repressão. Democracia deveria estar acima de ideologia, acima de tudo, aliás.

Ainda Estou Aqui, filme em cartaz no cinema, é retrato do horror de uma ditadura Foto: Sony/Divulgação

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Um país livre deveria ter também como base a empatia com todos os seres humanos, não só de sua família, dos amigos, da vizinhança, de sua cidade, de sua ideologia, de seu país. Nesse sentido é de alguma forma deprimente que um presidente seja eleito democraticamente com o seguinte lema: deportação em massa para os imigrantes ilegais, como ocorre com o americano Donald Trump. Partindo da hipótese provável de que quem abandona sua nação e seus entes queridos, em busca de uma vida melhor, o faz devido a uma série de circunstâncias penosas e indesejáveis, é algo desolador imaginar que o egoísmo de não querer o melhor para essas pessoas seja algo tão constituinte de nós.

Acabou de estrear nos cinemas brasileiros o filme “Ainda Estou Aqui”, do cineasta Walter Salles, baseada na obra de Marcelo Rubens Paiva, que trata, de maneira ao mesmo tempo sutil e contundente, das consequências brutais que um regime de exceção pode causar na vida de uma família. A história do desaparecimento do então ex-deputado Rubens Paiva, com 42 anos, mostra que nós, como país, podemos ser brutais, inclusive com inocente. Paiva, então um ex-parlamentar cassado, não era terrorista, muito menos radical, e tentava ganhar a vida apenas como engenheiro, no máximo distribuía cartas de exilados aos seus familiares, com sabemos pelos livros de história.

É claro que a história, de verdade, traz muitos paradoxos. É mais que sabido que muitos grupos que combatiam o governo autoritário brasileiro defendiam um regime tão ou mais violento e restritivo do que instalado aqui, de moldes maoistas, por exemplo. O radicalismo de ambos os lados, mesmo que um fosse extremamente mais poderoso e equipado que outro, só exacerbou as coisas. Mas, é realmente incrível que ainda, nos dias de hoje, seja tão forte no país um movimento de massas que tenha como líder um ex-presidente (sim, falamos aqui de Jair Bolsonaro) que seja nostálgico da ditadura brasileira – que sufocou opiniões, posições e, sobretudo, vidas.

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O drama da viúva de Rubens Paiva, Eunice Paiva e seus cinco filhos, (interpretada magistralmente por Fernanda Torres) deveria ser suficiente para colocarmos um limite em quem deve e não deve merecer o nosso voto. E essa linha divisória seria: a posição em relação à ditadura, a qualquer ditadura precisa ser examinada antes de concedermos mandato a alguém por meio de nosso poder de escolha.

Mas sabemos que esse desejo é uma utopia vã e ingênua. Para começar, apenas uma parcela mínima da população brasileira irá assistir ao filme de Walter Salles, mesmo que, eventualmente, ganhe o Oscar. A enorme maioria dos brasileiros não tem recursos para ir ao cinema ou mesmo para assinar um pacote de streaming. Há também os que desprezam os nossos artistas (vídeos algo elitistas de apoio a certos candidatos só pioraram as coisas). Sem falar dos que simplesmente não irão se interessar em se debruçar sobre um momento tão dramático da história brasileira e preferirão ir atrás de algum blockbuster (a vida é tão estressante e a diversão alienada sempre estará em vantagem - faz todo sentido e só nos resta compreender).

Além de tudo, a democracia, às vezes, garante muito pouco da nossa perspectiva de nossas agruras cotidianas. Em muitos casos assegura apenas a liberdade de pensar diferente. Mas esse detalhe pode fazer toda diferença e apontar os novos caminhos que trarão avanços e desenvolvimentos futuros. A democracia também é barulhenta, cheia de som e fúria, incomoda, pode ser ultrajante na sua livre circulação de ideias, incluindo as mais ferozes (não é queimando livros que a sociedade será melhor, por mais repugnantes que sejam seus conteúdos).

A democracia, por todo ruído que traz, pelos paradoxos que apresenta (na democracia a gente pode defender ditadura, mas na ditadura a gente não pode defender democracia), é o que de melhor conseguimos construir na nossa trajetória de milênios. É instável, é sujeita a crises, mas fora dela, da democracia, é consentir em ver pessoas serem assassinadas apenas por pensarem ou agirem de maneira diferente do que os poderosos de plantão querem impor, como ocorreu com o ex-deputado Rubens Paiva no distante temporalmente, mas não do ponto de vista das mentalidades, 1971. É por isso que deveríamos simplesmente não mais oferecer nossos votos a todos os proto-ditadores de plantão, inclusive os já eleitos (há em vários partidos brasileiros, de ideologias inclusive opostas). A realidade é que, em todo mundo, muitas vezes gostamos de votar em autoritários para que os problemas complexos sejam resolvidos de maneira rápida e violenta. Mas o sonho vão de que o melhor seria que tudo isso fosse diferente continuará.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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