Nesta sexta-feira chega a uma semana em que cerca de 20 milhões de brasileiros só podem ter acesso à rede social “X”, antigo Twitter, se quiserem correr o risco de pagar uma multa de R$ 50 mil, conforme decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, com o endosso unânime de uma das turmas da corte.
O Estado de Direito é um dos maiores pilares de qualquer civilização. Sem o cumprimento das decisões judiciais, as sociedades podem entrar num processo caótico de desobediência civil. No caso do “X”, entretanto, a decisão do juiz fere um princípio que também deveria ser base de qualquer civilização: a liberdade de expressão, incluindo o direito de saber o que os outros expressam.
Pesquisa Atlas divulgada hoje no Estadão mostra que os brasileiros estão divididos se o “X” deve ou não ser suspenso, no empate técnico. Mas a maioria acredita que Alexandre de Moraes agiu por “motivação política” (56%) e 64% discordam do valor algo exorbitante da multa. No final das contas, o que deveria se tornar uma discussão profunda sobre uma situação em que dois princípios se chocam, acabou por se tornar mais uma guerra de torcidas. Existe o #xandãoteam e o #muskteam, em referência ao bilionário dono da plataforma, quando ambos podem estar errados ao mesmo tempo.
Se não fossem dois personagens tão poderosos - com tanto estofo, conquistas e formação – e tanto em jogo, poderíamos dizer que parece briga de duas crianças mimadas. De um lado um ministro que usa sem contenção um perigoso brinquedo que tem nas mãos: os inquéritos da fake news e dos atos antidemocráticos. Em tese, para evitar um golpe de Estado, Moraes não renuncia a medidas autoritárias e até mesmo perigosas para qualquer sociedade na busca de seus objetivos: a censura prévia. De outro, um fanfarrão que debocha abertamente do judiciário brasileiro. Não tinha como acabar em boa coisa esse confronto entre os dois.
Nessa circunstância brasileira apareceram aqueles que se consideram progressistas, democráticos, até mesmo iluministas, mas que no final das contas apoiaram com entusiasmo a proibição do “X”. Na verdade, caiu a máscara. Já que a decisão é contra um “inimigo”, no caso Elon Musk, às favas com a liberdade de expressão e mesmo com a possibilidade tanta gente acompanhar ou mesmo interferir em um debate mundial que, gostemos ou não, ocorre nessa plataforma. Para eles, essa vedação virou questão menor, um mimimi.
Um efeito colateral desses acontecimentos é que grupos políticos que nunca se interessaram pela liberdade de expressão, inclusive que defendem atos autoritários como o AI-5, que instaurou a censura prévia no Brasil, hoje pegam a bandeira da circulação irrestrita das ideias. É aquela história de não existir vácuo na política, e nem mesmo nos valores.
A possibilidade de censura, mesmo que do bem, esconde uma série de nós górdios. Por exemplo, não é tão óbvio assim definir o que é mentira ou mesmo discurso de ódio. Muitas vezes consideramos como mentira o que é uma asserção verdadeira para o outro. Para um ateu, por exemplo, a expressão “Deus existe” é uma fake news. Para um religioso, “Deus não existe” que é uma expressão falsa. Claro que existe a mentira quando comparada com o fato. Mas o que se quer proibir são as asserções que desagradam a lista de heresias do momento.
Cada período histórico tem seu index de proibições morais do que pode ser expresso. Já foi contra a religião, contra os ditadores, hoje pode ser contra as minorias, por exemplo. Foi nesse sentido, que os verdadeiros iluministas, ainda no século 18, defenderam a circulação sem qualquer controle do Estado das ideias, inclusive as mais repugnantes. Porque a proibição sempre seria utilizada para atender algum projeto político seja dos reis, da nobreza, da igreja, do ditador, dos poderosos, dos grupos sociais organizados, seja de quem for.
Hoje, para justificar censuras, tentam até invocar o paradoxo apontado pelo filósofo Karl Popper – aquele que diz que ideias intolerantes podem levar ao fim do ambiente de intolerância – mas esquecem de dizer que o próprio Popper, um exilado do nazismo e antimarxista convicto, achava que as ideias deveriam continuar livres e combatidas com outras ideias. O que deveríamos reprimir são as ações perigosas delas decorrentes. Com certeza, um desafio difícil de executar.
Sem nenhum interesse por princípios (frente ao fato de que em diversos países se submete a ordens judiciais opacas), Elon Musk acabou por desnudar a cena tupiniquim. Temos no Brasil uma direita e uma esquerda que são no fundo oportunistas e capazes de se agarrar ou jogar princípios foras a depender das conveniências políticas de ocasião. A tal liberdade de expressão é apenas a última vítima.
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