Há alguns meses ficou meio decretado que as cotas raciais implantadas no Brasil eram um exemplo de sucesso incontestável de nossas políticas públicas. Houve reportagens, editoriais e declarações nesse sentido inclusive do presidente do Supremo Tribunal Federal, José Roberto Barroso. Houve uma série de reportagens mostrando o aumento de pretos e pardos nas universidades brasileiras, o que de fato seria um ganho palpável. Finalmente teríamos acertado uma.
A questão é que esse consenso foi bastante abalado nos últimos dias por meio de dois fatos distintos. Um deles foi a comissão de heteroidentificação da USP negar a matrícula a Alisson dos Santos Rodrigues, de 18 anos, por não o considerarem pardo. Outro foi a divulgação da pesquisa Datafolha segundo a qual 56% dos brasileiros são contra o modelo de cotas raciais, entre eles, 39% dos pretos, em tese os principais beneficiados com a medida. Já a aprovação das cotas sociais chega a 83% da população.
O racismo no Brasil é algo muito difícil de negar. Vem da nossa trajetória. A escravidão de negros da África sustentou nossa economia por séculos (na Europa prevaleceu a escravidão branca). Houve violência, covardia e ódio dos dominantes. Parte da sociedade passou a julgar pessoas como inferiores apenas pela cor da pele. O racismo pode estar até mesmo em um olhar.
Um livro fundamental para nos conhecermos enquanto sociedade racista é da historiadora Ynaê Lopes dos Santos. Chama-se “Racismo Brasileiro – uma história da formação do país”, da editora Todavia. É um livro militante, controverso, mas vale enfrentá-lo. A trilogia de Laurentino Gomes também traz sutilezas como o fato de os colonizadores portugueses, sanguinários e ardilosos, evitarem expedições para capturar nativos. Preferiam comprar prisioneiros entre tribos inimigas.
Por evidentes ocorrências históricas, negros saem em condição de desigualdade no Brasil. Possuem menos acesso à saneamento básico, educação, segurança, moradia de qualidade do que os com a pele mais branca, segundo as estatísticas. Como prosperar na vida quando mal se consegue alimentar devidamente nos primeiros anos de vida? Cotas, nesse sentido, seriam quase uma solução natural. Dar uma compensação aos pretos e pardos por suas dificuldades maiores.
Mas os problemas começam logo em sua concepção. Para que as cotas sejam implantadas é preciso utilizar-se da lógica do colonizador, ou seja: dividir a sociedade em raças, o que não tem hoje fundamento científico. Busca-se então dividi-las em cores, o que provoca outro tipo de problema. Por nossas origens e miscigenação somos multicoloridos. Não há critério científico que consiga resolver essa nossa condição. Em toda essa polêmica envolvendo o estudante Alisson, os responsáveis por esses comitês nos devem ainda explicações sobre seus critérios.
Aparentemente há um elemento de subjetividade que não deveria ser aceitável. E, se houvessem elementos estritamente objetivos envolvendo cor de pele, haveria um cheiro de eugenia no ar. É um problema a ser solucionado. Enquanto isso, a alegação de que Allison não passou por ter se apresentado com cabelos raspados é algo assustador.
Outra questão deixada de lado pelas cotas é que o processo educacional no Brasil é uma espécie de funil. Os mais pobres ficam para trás logo no começo, no ensino fundamental. Completar o ensino básico é outro desafio. Mesmo entre os negros há essas diferenças e o beneficiário da cota é quem conseguiu atravessar esse longo e difícil processo. Está praticamente em posição de enfrentar de igual para igual com os colegas na Universidade. Daí que, mesmo mais diversa, não teria havido queda na qualidade de ensino.
Mas a verdade é que as cotas ainda não beneficiam os negros mais pobres ou miseráveis. Para que essa parcela de nossa sociedade também ganhe com a política educacional é preciso fazer algo que até hoje ainda claudicamos: universalizar o ensino de qualidade para desde o início, a partir das creches. Fora isso, com ou sem cotas, o País continuará desigual, pouco produtivo e com dificuldades em relação ao mundo. Essa parece ser a tarefa sempre adiada. Aliás, até quem deveria ganhar com as medidas de inclusão atuais já começou a perceber suas falhas e o tema deixou de ser tabu. As discussões estão reabertas. Passou da hora de simplesmente chamar de “racista” a quem busca melhoramentos.
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