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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião | França iconoclasta nos lembra que Olimpíadas não são jogos cristãos

Podemos ver a abertura dos Jogos como uma tentativa de lacração, provocação barata. Como acontece com quase tudo no mundo atual, as cenas dividiram os militantes planetários

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Atualização:

As Olimpíadas não são um evento cristão. Longe disso. São competições que têm suas origens no ano 776 antes de Cristo para celebrar os deuses gregos, sobretudo Zeus, que era um personagem mitológico devasso e violento. O fim dos jogos olímpicos da era antiga, no ano 393 da nossa era, também tem a ver com o fato de que, na versão mais estabelecida da história, um imperador romano convertido à religião Cristã, Teodósio I, proibiu eventos relacionados ao paganismo e ficamos cerca de quinze séculos sem o espetáculo em sua concepção original.

Anéis olímpicos Foto: Divulgação/COB

Além disso, enquanto nos horrorizamos com um transgênero em pleno 2024, no caldo de cultura em que surgiram as Olímpiadas - a Grécia antiga - o homossexualismo não só era permitido como socialmente podia ser estimulado. Como tradição, o homem mais velho (erastes) atuava como tutor de um jovem (erômeno) do ponto de vista filosófico, militar, político e sexual. Os textos helênicos estão recheados de exemplos nesse sentido. O Banquete, de Platão, umas das obras cruciais da filosofia ocidental, sobre o amor ideal, é um texto que celebra a ligação mais que espiritual entre Sócrates e seu discípulo Alcibíades.

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Talvez também seja preciso lembrar da forte tradição iconoclasta da cultura francesa. É o país do sacerdote católico Jean Meslier (1664-1729) que escreveu um tratado para promover o ateísmo (!) que continha a seguinte frase: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Intento que foi levado às últimas consequências pelos revolucionários de 1789 e que está presente nas páginas do jornal satírico Charles Habdo, que em março de 2015 sofreu um atentado de extremistas mulçumanos que vitimou 11 de seus integrantes e dois policiais.

De fato, podemos ver a abertura das Olimpíadas francesas como uma tentativa de lacração, uma provocação barata. Uma drag queen que remete ao Cristo da Santa Ceia de Leonardo Da Vinci. O Deus grego Dionísio representado por modelo pintado de azul. Um cavalo branco guiado por um ser sombrio de armadura. Ok. Como acontece com quase tudo no mundo atual, as cenas dividiram os militantes planetários. De um lado houve celebração da diversidade. De outro se viu blasfêmia e até mesmo mensagens satânicas subliminares. “A que ponto chegamos?”, reclamaram alguns.

Mas, por outro lado, se a gente pensa que as Olimpíadas na era Cristã contam com 128 anos, a partir de 1896, contra os doze séculos de sua realização na era antiga, é possível pensar que a bagagem cultural dos jogos transcende em muito qualquer suposta sensibilidade das religiões monoteístas, consolidadas bem mais tarde. Além disso, a França é a terra não só de Meslier, mas de outros polemistas natos como Voltaire. Digamos que esse tipo de provocação seja até mesmo tradicional entre os gauleses.

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Além disso, o conceito de blasfêmia não costuma resistir ao tempo. Já foi blasfemo, Galileu que o diga, dizer que o planeta Terra girava sobre seu eixo e dava voltas em torno do Sol (contradiz Josué 10:12 da Bíblia). Em alguns países é blasfêmia as mulheres não vestirem véus adequadamente e a pena pode ser a morte. Já foi blasfêmia as mulheres participarem ou mesmo assistirem ao jogos. Os tempos mudam, em muitos casos para serem mais tolerantes (e menos mal-humorados). Uma das tentativas do chamado movimento identitário, inclusive, é considerar blasfemo declarações que afetem suas suscetibilidades.

Há algo que também deveria ser pensado sobre o cristianismo. Em tese trata-se de uma religião que pode ser interpretada como uma defesa dos mais fracos. No mundo atual uma drag queen obesa estaria em qual categoria, dos humilhados ou de uma ameaça aos valores cristãos? A resposta hoje depende de qual a sua postura em relação à tal guerra de cultural. “Os humilhados serão exaltados”, diz a intepretação de Mateus, na Bíblia, seria esse o sentido da cena? Ou então, seria algo como: “Cristãos, o fim dos tempos se aproxima e nossos valores estão ameaçados”, como se pronunciaram alguns líderes políticos, como dirigente italiano Matteo Salvini, ou em um exemplo tupiniquim, o deputado Nikolas Ferreira.

A maioria dos questionamentos acima sobre como deve ser interpretada a abertura das Olimpíadas não tem solução consensual. Mas a graça de uma sociedade verdadeiramente liberal seria: quer fazer uma sátira da cena da Santa Ceia (ou do quadro “A Festa dos Deuses, de Giovani Bellini) com um transgênero obeso? Pode. Quer protestar contra a cena e pedir boicote das Olimpíadas? Também pode. E toda controvérsia seguir no campos das ideias e argumentos, mesmo que apelativos ou falaciosos, sem chegar à violência. Nesse sistema, o Estado nem as convicções religiosas têm poder de proibir opiniões ou manifestações artísticas, mesmo as consideradas blasfêmias.

Uma nota para reflexão: o promíscuo Zeus, a quem se dedicavam as Olimpíadas antigas, e o homossexual Leonardo da Vinci (leiam a biografia de Walter Isaacson sobre esse gênio), tinham comportamentos que chocariam toda essa gente que condenou a abertura das Olimpíadas. Frente a tantos fatos ultrajantes (a depender de sua perspectiva sobre moralidade) que estão por trás da origem dos jogos, se escandalizar com drags queen como apóstolos na Santa Ceia seria muito barulho por nada. “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de vocês dizê-las”, afirmou Voltaire em declaração do século 18 cada vez menos aceita pelos polarizados de plantão do histérico mundo contemporâneo, à esquerda ou à direita.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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